8:29O mundo mágico da menina

por Thea Tavares 

“Quem me dera, um dia,
ter seus olhos, cor da primavera”.

(Menininha do Portão – Paulinho Tapajós e Nonato Buzar).

Aquela colina verde era seu mundo mágico particular. Cabia inteiro dentro do quintal de sua casa, à sombra de uma castanheira. Era ali que a menina se isolava e se blindava da realidade, para ganhar a liberdade de imaginar incríveis histórias, aventuras sem barreiras e sem limites. Era onde ela gostava de fantasiar, imitando as sequências dos filmes que passavam na sessão da tarde. A maioria deles só ganhou cor graças ao avanço da tecnologia aplicada à indústria cinematográfica. Mas ela não se importava. Com ou sem uma grande gradação de cores, devorava intensamente aqueles enredos cheios de efeitos especiais e de sonhos.

Ela percebeu que a colina diminuía de tamanho à medida em que o tempo passava. Claro! Na mesma proporção em que a menina crescia, que espaçavam-se as horas e os dias dedicados a brincar naquele seu refúgio do quintal. Um ponto de referência era a pedra branca, que saltava do solo, em volta da qual a garota distribuía seus brinquedos e dava asas à imaginação. No início, a pedra servia de mesa, depois era só um banquinho e, por fim, virou uma superfície plana que se estendia até o limite da mão aberta.

Ela incorporava a natureza em volta, fazendo com que formigas, joaninhas, galhos, folhas e até a monstruosa lagarta de fogo interagissem com a boneca, o lápis de cor, o botão e com todo cacareco que ela inventasse de carregar para o quintal a fim de desapegar-se do mundo por algumas horas, bem como desejava que o mundo lhe desse um pouco de sossego naquele intervalo de tempo. Desde pequena, aprendeu a valorizar e reservar momentos para ouvir as próprias ideias. Era sua rebeldia silenciosa. Os pensamentos bradavam! Cada cor de lápis tinha um nome e uma personalidade para interagir com os demais. Inconscientemente, quem sabe por obra de alguma memória cultural, seus instintos lhe diziam que a condição básica para humanizar aqueles objetos seria atribuir-lhes o direito de terem um significado todo próprio, uma identidade, e de terem garantido assim o livre exercício das suas vontades.

Às vezes, as amiguinhas, parentes e as vizinhas vinham brincar com ela no quintal. Atirava-se de cabeça nessas aventuras também, uma vez que sempre fora um espírito comunicativo e agregador. Mas nunca revelou a ninguém a existência do seu mundo mágico. Foi um dos poucos segredos que guardou na vida inteira. Com outras crianças, o quintal virava palco de peças de teatro, acampamento e de desfiles de moda, que sempre terminavam com alguém descontente por não ter vencido a competição ou porque seu personagem era o vilão da história, porque teve que fingir ser menino na brincadeira ou ainda porque não era a protagonista da trama. A ponto de essas pequenas disputas infantis virarem motivo de desentendimentos por extensão entre aqueles que se autoproclamavam adultos, ou seja, os pais das crianças.

Nessas ocasiões, a menina voltava saltitante para sua coleção de botões, lápis de cor e bolas de gude, já que ali, sozinha, era ela quem ditava as regras e o funcionamento de tudo. Botava ordem no play! Mas a força bruta sempre foi a resposta fácil e covarde da falta de argumentos razoáveis. Volta e meia seus irmãos tomavam de assalto as bolas coloridas mais bonitas da pequena para se exibirem nas ruas e na escola, tentando ganhar mais algumas nos jogos de bater umas contra as outras. Ela nunca mexeu nos brinquedos deles, nem nos álbuns de figurinha ou nos gibis de heróis e cowboys que eles espalhavam pela casa. Mas eles sempre se achavam donos das coisas dela e sequer foram ensinados a se comportar diferente. Acho que foi dali que nasceu sua consciência de que a vida era injusta com as mulheres, que havia desigualdades no mundo e que teria de expressar alguma força gigantesca, tirada sabe-se lá de onde e na base de um improviso corajoso, para conseguir impor sua opinião nessa sociedade bélica e discriminatória.

“Hoje, maliciosa, guarda um segredo,
em seu coração”.

(Menina – Paulinho Nogueira)

Ao estudar a lista de livros recomendados para a preparação dos candidatos ao vestibular naquele ano, finalzinho da década de 80, ela revisitou sua colina verde – à sombra da castanheira do quintal e com uma linda pedra branca que saltava do solo – na relação de amizade estabelecida entre o Minguinho e o Zezé em “Meu Pé de Laranja Lima”, obra de José Mauro de Vasconcelos. Até o contexto familiar descrito e a explicação psicológica para aquelas abstrações infantis, inserida nele, faziam com que seu cotidiano se assemelhasse às circunstâncias da literatura.

Tal reflexão imprimiu nela uma sensação inédita de pertencimento e de compreensão. Para o autor e somente para ele, ela seria capaz de revelar o segredo da colina verde. Naquele ano, precisamente, esse encontro já era algo impossível de acontecer. Mas vamos brincar de faz de conta: digamos que o Zezé e a jovem pudessem se desprender das amarras da realidade e se divertissem algumas horas entre lápis, botões, bolitas e as bonecas descabeladas da menina. Que doce e mágico que seria isso! Pois foi da imersão naquele quintal e no solo fértil das inúmeras fantasias contadas em livros e filmes, nutrizes da sua personalidade, que brotou uma mulher que ainda brinca de se refugiar entre silêncios e canções, cores e projeções, para se encantar e desbravar os caminhos tortuosos desta vida.

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