9:24A Substância

por Fernando Muniz  

        Passos ligeiros mostram que não há tempo a perder. Ninguém em casa, porém não demora muito e todos estarão de volta. Passa pela sala, joga a mochila da escola sobre a cama e parte para o quintal, onde, no topo de uma ameixeira que já o serviu como barco pirata e na qual escolhera qual constelação iria visitar primeiro quando se tornasse astronauta, mete a mão no bolso do agasalho em busca de um papelote prateado.

Seus dedos, até então imbatíveis no jogo de dois-ou-um ou em fazer sinais durante as partidas de vôlei, enrolam um guardanapo de cantina, ordinário, que, com agilidade, toma a forma de um foguete.

A fumaça invade a traqueia, pulmões e brônquios, sem freios, sem pressa, apossando-se daquele frangote franzino, mais uma vez super-herói, agora sem lirismo algum, pois usa seus poderes momentâneos somente para aplacar urgências e aflições inexplicáveis, algo incompreensível a si próprio, que dizer então ao padre, professores, policiais ou, principalmente, a seus pais.

Ali, trepado na ameixeira, sente um relaxamento intenso, sensação fugaz que o embala sobre a copa da árvore amiga, na qual se agarra ao pressentir que, sem ela, não saberá mais se guiar neste mundo, enquanto segue rumo a uma dimensão paralela, de mil cores fabricadas, com sons e imagens tão incríveis que parecem falsos.

Mas tanto faz. O menino de infância perdida fecha os olhos e não vê mais diferença entre o que pensa e o que sonha; seu êxtase é mais forte que a vida, mais poderoso que o medo da morte.

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