8:24A Boca falou, tá falado!

por Jamur Jr

No ano de 1961 a Televisão Paranaense – Canal 12 dava seus primeiros passos no último andar do Edifício Tijucas. O estúdio era tão pequeno que alguns gozadores diziam que o dr. Nagibe havia concebido um novo tipo de televisão: a Televisão de Quitinete. Era, na verdade, um pequeno apartamento do empresário Nagibe Chede – o grande pioneiro da TV –  adaptado para servir de estúdio para a primeira emissora de televisão do Paraná.  Lá embaixo, na calçada sempre lotada de gente, uns na fila do Cine Ópera, outros batendo papo, no local onde muitos chamavam de Cinelândia. Jornalistas, políticos, artistas de vários setores, empresários, gente famosa e anônimos, todos se reuniam para um encontro de velhos amigos e novos que se faziam com facilidade naquele território democrático, onde todos se pareciam, ninguém discriminava, os esnobes eram ridicularizados, os piadistas faziam graça sobre fatos e gentes do pedaço, os comentaristas analisavam tudo. Era ali, e continuou sendo, a Boca Maldita, uma instituição criada para servir de referência aos curitibanos conhecidos por uma falsa aparência de tímidos, distantes e de poucos amigos. Nada disso! Quem conviveu naquele pedaço de chão curitibano tem outra imagem de nossa gente. O curitibano mostra-se, quase sempre, reservado nos primeiros contatos, mas se transforma rapidamente num amigo intimo da melhor qualidade. Aqui vão algumas histárias de personagens e do ambiente da Boca Maldita…

Cheguei na Boca Maldita antes mesmo da inauguração da TV Paranaense no Tijucas. No final da década de 50 peguei o trem em Paranaguá,  onde deixei a Radio Difusora com a recomendação de fazer contato com o locutor parnanguara Souza Miranda, que era o chefe dos locutores na Rádio Cultura do Paraná. Osvaldo de SOUZA MIRANDA, pai do talentoso Miran, foi quem abriu as portas e microfones no ano de 1957, quando subi a serra com o propósito de ser locutor de rádio, velho sonho de criança que se tornou realidade graças ao apoio do velho e bom amigo. Na Boca Maldita conheci pessoas interessantes, alguns inteligentes, outros medíocres muitos nem um nem outro. Mas aprendi muito com todos e fiz amigos para o resto da vida – e é isso que importa. O ambiente na Boca Maldita sempre foi de alegria, descontração, críticas e boas gargalhadas. Era onde a gente encontrava o Anfrísio pichando alguém, o Mazza com  algum comentário inteligente e boas piadas sobre fatos e pessoas da cidade. O Esmaga não perdia um momento sem ficar ao lado numa rodinha de conversa, ouvindo tudo e, de quando em quando, dando um palpite furado e fazendo um pedido sério: “Me me arranja um trocado” dizia, exibindo uma gengiva desimpedida, parecendo goiaba madura colhida em Morretes. Saía o Esmaga entrava a Maria Marcha Lenta, com o mesmo objetivo. Pedia um trocado com voz baixa, jeito tímido… mas,com determinação. Nesse cenário, que parecia um quadro de Picasso, surgia a figura elegante do atleta gaúcho, o Bataclã, um campeão de maratonas e de simpatia. No outro lado da avenida João Pessoa, onde se reuniam outros grupos, reinava Maria do Cavaquinho, que os gozadores costumavam pagar para ver alguma cena de constrangimento com personalidades presentes.

– Maria, você vai levar 5 pratas se for naquele grupo de pessoas e passar a mão na bunda daquele cidadão de terno azul e gravata amarela.

E lá ia Maria do Cavaquinho fazer a peraltice que valia cinco pratas e um susto no pacato cidadão, quase sempre uma autoridade cuja bunda ninguém tinha coragem de passar a mão, nem de perto. Não bastasse as loucuras dessa mulher, surgia sempre  a famosa Gilda, travesti com seus trejeitos escandalosos, boca pintada com muito batom, e distribuindo beijos nos distraídos.

Na Boca Maldita sempre se falou de tudo: futebol, política, música, novas conquistas e infidelidade conjugal. Ivan tinha sempre uma história sobre o assunto. Miguelito, o contestador, sempre pronto para uma boa discussão na área da politica – e de preferência internacional, do ramo latino-americano.  Jorge Fan capitaneava um time de parnanguaras reunidos para colocar as fofocas da terrinha em dia e criar novos apelidos para muitos dos frequentadores da Boca. Alí, na conversa sobre pessoas, identificava cada um pelo apelido, uma prática comum em Paranaguá, onde o nome de batismo muitas vezes é superado pelo apelido. Não era raro alguém ser procurado pelo nome e não encontrado.  Nas campanhas eleitorais vários candidatos da da cidade portuária aparecem na publicidade apenas com o apelido que todos conhecem. Um dos grandes “apelidadores” da Boca era o Risseti, um empresário com cara de sério, mas no fundo um grande gozador. De sua autoria, e de outros parnanguaras, surgiram apelidos que marcaram pessoas como Cara de Chuva, Peixe Boi, Cabeça de Caixa de Sapato, Marmita, Pingo, Pinto Louco e tantos outros. Sob a marquise do Hotel Braz, numa roda de boa conversa, Júlio Gomel sempre rodeado de amigos, atleticanos ou não, ouvia as últimas do seu time, ou  um amigo com uma consulta médica, e um pedido que sempre se repetia. Pinóquio, por exemplo, era um tipo popular que ao ver o dr. Júlio  estendia a mão para conseguir algum:

– Doutor, me dá algum  pra comprar uma entrada no jogo do Atlético na Baixada.

Pronto, Pinóquio, levava o dinheiro e vai torcer pelo nosso time.

– Mas, doutor, preciso de um pouco mais…

Por que?

– Quero comprar um cachorro quente, no intervalo.

Júlio atendia, como sempre, o pedido que fazia parte de sua agenda de frequentador da Boca Maldita.

A Boca Maldita mudou muito nos últimos anos. A cidade cresceu, novos habitantes do local surgiram. O tempo em que políticos como Aníbal Cury, Jaime Lerner, Maurício Fruet, Orlando Pessuti, então mais magro, e tantos outros a frequentavam, aos sábados pela manhã,   ao lado de radialistas e jornalistas como  José Maria Pizarro, Moacir Gouveia, Aderbal Fortes,  Haroldo Lopes, Renato Mazaneck, numa grande confraternização com médicos como Félix Almeida, Paula Soares,  Dr. Gérson, um coxa-branca de respeito, e tantos outros, ficou na memória como aquele em que nem a ditadura não conseguiu  mudar o humor de seus frequentadores.

No começo era o Café Ouro Verde , onde hoje esta a loja Lavier, o local onde se reuniam os vários grupos de amigos que formam a expressiva população da chamada República Democrática da Boca Maldita – um território onde, desde a década de 60, havia a mais ampla liberdade de expressão, apesar de tudo. Era onde se podia falar, comentar, criticar todos e tudo sem medo. Nesse espaço curitibano, havia outros locais onde se reuniam quase todos os dias aposentados, ou não, que faziam da conquista de novos amigos e manutenção dos velhos, quase uma religião. Os encontros eram diários desde o café Ouro Verde, ao Alvorada, na Travessa Oliveira Belo, e os bares da Galeria Tijucas. Ali se encontravam pessoas de todos os pontos da cidade e muitos dos que trabalhavam ou eram empresários com seus estabelecimentos na região. Os irmãos Santos , do Magazine Avenida, atravessavam a rua para um cafezinho, rápido, alguma conversa com alguém e o retorno para atender a clientela. O Boiko deixava sua joalheria para uma  saidinha ligeira, um café amigo e um bate papo com algum velho ou conhecido novo. Os italiano do Empório das Casimiras eram frequentadores de todos os dias e muitas horas no café Ouro Verde. O Salomão deixava sua joalheria na Galeria  Tijucas para um cafezinho ao lado do amigo e parente; Sale Wolokita, o sempre alegre, divertido, ator e apresentador de televisão também batia ponto ali de forma sagrada…

As mudanças no perfil dos frequentadores da Boca Maldita foram marcantes nos últimos anos. A Boca perdeu o bom humor, a facilidade de analisar e criticar os políticos e a sociedade. Outros habitantes, outros costumes, outros interesses. Nos chamados bons tempos, era comum se encontrar aos sábados empreiteiros de obras públicas, políticos, jornalistas, conversando sobre futebol, mulher e outros assuntos menos interessantes. Empresários circulavam sem medo, políticos andavam por todos os cantos da região sem a preocupação com vaias ou com alguém que pudesse provocar alguma cena de constrangimento. A Boca Maldita mantinha um ambiente onde a alegria e a descontração predominavam. Foi um tempo em que não se ouvia com muita frequência e insistência noticias sobre ladrões usando explosivos potentes para  abrir cofres de bancos, enquanto outros silenciosos saqueiam os cofres do povo. A Boca Maldita sempre foi ao longo de muitos anos, o pontos de encontro favorito , também, de catarinenses e gaúchos. Muitos deles vinham estudar na Universidade Federal do Paraná e outros para atender seus interesses profissionais. Com a eleição de José Richa para o Palácio Iguaçu começaram a chegar os chamados “pés vermelhos”, pessoas da região de Londrina que assumiram cargos ou foram eleitos para o legislativo ou por outros motivos. A Boca Maldita  ficou mais diversificada nessa saudável mistura de gente de toda parte fazendo novos amigos e confraternizando no território mais democrático de Curitiba. A cidade tinha, pelo menos, quatro meios de comunicação eficientes: jornais, rádios, televisão e a Boca Maldita. “Se a Boca Falou, tá Falado” – diziam. Um boato saído da Boca atingia em pouco tempo grande parte da cidade.

Voltei a visitar a Boca Maldita, depois de longo´tempo.  Não sorri, não falei, nem ouvi. Lá, quase ninguém. Sem o barulho de vozes, predomina o som potente dos propagandistas de lojas. A Boca Maldita  morreu?  “Morreu, não!” como dizem lá no Nordeste. A Boca Maldita não morre, é eterna, vive de sua história e de seus frequentadores, os mais antigos e os mais recentes. A Boca vive. Viva a Boca.

 

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3 ideias sobre “A Boca falou, tá falado!

  1. Sergio Silvestre

    A boca maldita de Londrina com o passar do tempo se tornou reunião de idiotas é o que deve ter acontecido com a de Curitiba

  2. walter

    O sempre brilhante Jamur Junior faz um retrato muito interessante da BM, que hoje nada mais significa.

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