18:40ZÉ DA SILVA

Foi o primeiro contato, como esquecer? Ele já estava cozido, eu odiando a situação, porque ainda não bebia. Zumbido. Meu pai tinha isso – e estava incomodado depois de não sei quantas talagadas de juru, juru, juru, jurubeba. Pediu para que eu ouvisse também. Sempre obedeci-o. Então encostamos os rostos ossudos, orelha na orelha. Claro que eu não poderia escutar nada, mas agora, anos e anos depois, descubro que foi a primeira vez em que, quase adulto, senti a pele dele, a carne, a aspereza da barba, o cheiro que misturava cigarro, álcool, a loção que passava nos cabelos finos. Não ouvi os gritos de uma alma sempre atormentada, coisa que só vim a descobrir depois de ter passado pelo pântano da vida. Mas foi assim, lembrei disso. E posso até pensar que, ele sim, ele ouviu os meus demônios, aqueles que apareceram assim que comecei a ter alguma noção de vida, ainda criancinha de calça curta e suspensório. Herdei os zumbidos, que para mim tocam música ou transmitem falas indecifráveis nas madrugadas em que acordo e fico olhando uma pequena luzinha vermelha de uma tela enorme de tv. Acho até que naquele dia, no bar vazio que era dele e eu seu filho ajudante, devo, sim, ter recebido a mensagem de que um dia, no futuro, haveria outros contatos, mesmo ele também não sabendo disso, depois que ambos tivessem sobrevivido. Então, uma vez, eu o beijei e, na outra, ele me beijou. Para sempre.

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