3:39Vista minha pele

por Thea Tavares

Outro debate polarizado em sala de aula sobre política. O rapaz não aguentava aquilo, só queria que o sinal tocasse e anunciasse o fim de mais um dia de dever cumprido com os pais. Eles trabalhavam, o piá estudava. Era assim que funcionava o esquema familiar. Sairia dali e correria para o computador num pé só, pé de vento, a fim de aumentar seus pontos no jogo eletrônico. Era sua meta para hoje. À noite, iria a uma festa organizada pelo Centro Acadêmico da faculdade; promessa de diversão garantida.

Mas aqueles debates intermináveis em sala de aula e sem qualquer perspectiva de entendimento, minavam suas energias e arruinavam uma paciência que já lhe era escassa para esse tipo de coisa. Ele sequer conseguia ter um lado na discussão e pouco importava quem tivesse razão, mas naquele dia, determinado a encurtar a prosa e não prorrogar mais o tal tormento, se posicionou ao lado da maioria dos seus amigos, ou seja, à direita, volver:

– Vocês alegam perseguição, por preconceito e intolerância, quando, na realidade, esse vitimismo todo esconde o principal ponto da discussão aqui: não é por manipulação que vocês não avançam, mas porque a sociedade não concorda com as ideias de vocês, não quer vocês. Simples assim! Se não enxergarem isso, vão continuar se iludindo e dizendo por aí que são vítimas de perseguição da polícia, do governo, do sistema, de tudo. Acordem!

O espanto foi geral. Quem nunca tinha ouvido ele falar, mal conhecia sua voz, sequer imaginava que ele possuísse um vocabulário capaz de preencher uma frase inteira. Aquele jovem que não estava nem aí para nada – “não dá nada” era seu mantra – quebrou o silêncio e manifestou alguma opinião, que nem era sinceramente a dele, mas que surtiu o efeito desejado. Ao som do alarme, todos deixaram a sala e fim de papo.

Eduardo engoliu a comida e não perdeu tempo em seguir o curso da sua programação. Já havia esquecido a manifestação em aula, até porque aquilo nunca teve importância mesmo. Lá pelas tantas, faltou bebida na festa e os jovens resolveram esticar o rolê em outra balada. Um dos moleques teve a bela e sinistra ideia de comemorar o discurso do Eduardo com um ritual de iniciação. Decretou que estava na hora do estudante experimentar uma “diversão” maior do que só encher a cara e vomitar.

Esse cara conhecia um fornecedor de drogas e combinou todo o esquema por mensagens de zap-zap. Os quatro garotos entraram no carro e foram buscar o bagulho no local estabelecido para a transação, seguindo apenas as coordenadas do Scooby-Doo e do Salsicha no GPS. Foi quando o “entendido” desembestou de evocar o Código de Defesa do Consumidor naquela situação bizarra e exigiu provar o produto antes da compra. No oba-oba, o Eduardo embarcou na ideia, fez coro e fez sua estreia. Não fez bem, deu revertério. A última coisa que tinha caído no estômago dele aquele dia fora o almoço apressado antes do game. Teve de se desgarrar do grupo às pressas, atrás de um banheiro, num boteco ali perto, que ele havia reparado na chegada. Quando voltou, não encontrou uma viva alma: nem sua turma, nem noia do “malária”, como o mentor da porra toda se referia ao fornecedor.

Mal teve tempo de pensar na situação e bolar uma saída dali, caiu na emboscada de um grupo. Levaram seu celular, carteira, tênis e roupas. Ficou só de cueca naquela rua desconhecida. Não tinha prestado atenção no caminho todo até lá, como era de praxe nunca se importar com muita coisa nessa vida. Ouviu um barulho que parecia ser troca de tiros, gritos e corre-corre. Portas batiam e janelas eram cerradas à medida em que o barulho aumentava, denotando aproximação da tropa.

“Cumprindo o seu maldito dever e defendendo o seu amor e nossa vida.”
(Alucinação – Belchior, 1976).

Em um varal, pegou emprestadas as primeiras roupas que enxergou, ainda úmidas e um pouco largas para ele, já que o dono delas deveria ser mais encorpado que o Eduardo. Vai assim mesmo, não queria ser encontrado do jeito que estava. Tentou sair dali e ouviu gritarem: – parado! Fica quietinho aí e não se mexe. A primeira luz que jogaram sobre ele quase o cegou. Quando conseguiu focalizar novamente, percebeu que vestia uma camiseta vermelha com a famosa estampa do Che Guevara, de olho machucado, e a frase mais batida do revolucionário, que até o alienado Eduardo sabia recitar, por causa dos trocadilhos que seus amigos inventavam para zoar a turma adversária da sala de aula.

– Dá uma geral nesse bandidinho!

Tentou protestar, ainda meio zonzo, mas foi em vão.

– Cala a boca, comunistinha do cacete, isso é desacato!

Pensou que talvez tivesse sido melhor ter ficado pelado.

Nisso, sentiu que levava uma gravata no pescoço, forçando-o a se ajoelhar e colocar as mãos na parede para a revista.

– Eu posso explicar, disse. Dessa vez, foi alvo de uma coronhada. Apagou.

Ficou sabendo depois que só não foi parar dentro da viatura por causa do protesto da comunidade e que havia sido abandonado na rua, desacordado, porque acharam sua carteira com um dos assaltantes, pego algumas ruas abaixo.

A mulher que estava diante dele quando abriu os olhos ainda disse: – não se preocupe. Por ”sorte”, você é branco. Meu filho (cujo rosto estava estampado na camiseta que ela vestia) foi abordado na volta da escola e nunca mais foi visto. Era trabalhador, não era vagabundo, não era traficante, mas pararam de procurar por ele. No jornal, a notícia do sumiço do rapaz veio acompanhada de uma quase sentença de morte e ao mesmo tempo de aceitação (ou omissão) social dela: “a polícia suspeita de envolvimento com drogas”.

– Pra quem você quer que ligue e venha buscar você aqui?

Abraçou aquela mulher aos prantos e com força. Caguejou os números do telefone de casa, ainda sob efeito da adrenalina do choque.

“Amar e mudar as coisas me interessa mais.”
(Alucinação – Belchior, 1976).

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