6:20Jurandir Augusto da Silva, adeus

Por que nos abandonamos em cada cruz? Perco amigos em telefonemas na noite ou na madrugada, como há pouco. Meu time, meu sagrado time dos que sobreviveram ainda um tempo depois da longa temporada nas catacumbas, ou daqueles que não conseguiram enxergar um pouco para dentro e expulsar alguns demônios e deuses falsos – e os que nos atormenta, sem que saibamos como aparecem ou se já nascemos com eles. Perdi Sergio Vieira há pouco tempo. Agora o amigo Jurandir Augusto da Silva. Encontro de 15 anos, iluminado pela sinceridade – das risadas, da ajuda mútua. Uma clínica para tratamento de dependentes proporciona também esse tipo de coisa que nos faz aguentar o tranco das outras, essa do lado escuro do dia-a-dia, que nos atropelam, tentam nos esmagar, mas… não conseguem. Porque aprendemos a valorizar o que importa. O filho ligou e me veio a maneira como eu falava com o Jura, durante o voluntariado, depois, no AA. Falávamos ao telefone, na hora certa. Nos encontrávamos para ir a um bar (sim a um bar!), porque gostávamos de moela, tomar água ou suco e jogar conversa, pra fora, mas sempre pra dentro. Uma vez ele me telefonou com a voz saindo do fundo das cavernas. A primeira coisa que perguntei é mais ou menos automática para nós: “Recaiu?”. Não, ele evitou o primeiro gole e senti a dor da alma voando pelo céu até meu ouvido porque também já tinha passado por momentos assim. Estava trancado dentro do carro. Perguntei se queria que eu fosse lá. Disse que não, que ia para casa. Pedi para telefonar assim que chegasse. Ele ligou. Já estava melhor. Fez o correto.  Aquilo reforçou a nossa caminhada convicta do “só por hoje”, tão simples e absurdamente positivo, porque aprendi que um pedido de ajuda, ao contrário do que sempre fazíamos durante o período do “universo paralelo”, é fundamental, resulta em “milagre”, nos faz entender que o comando do próximo passo é mesmo nosso. Achamos que não temos mais saída, que alguma coisa que nos incomodou arrancou de dentro qualquer perspectiva de ver luz na alma para ver direito o que nos cerca, principalmente nas relações humanas. Depois disso, rimos muitas vezes sobre o episódio, que ficou do tamanho que era, mas perigoso no momento em que pareceu tomar conta da gente. Jurandir era um ser humano alegre. Imagino que todos do Planeta sejam, mas a maioria não consegue se descobrir – e revelam isso que está aí. Eu e ele tentamos achar o caminho fugindo para o inferno. Depois saímos, para este encontro aqui mesmo, que durou até hoje cedo. No caminho descobrimos paixões materiais em comum: carro velho, por exemplo, sempre na corda bamba financeira, e sem rede de proteção. Os dois flutuando de Santanões centenários pelas ruas da cidade. Eu morrendo de inveja boa do dele, com mais de 400 mil quilômetros rodados e ainda na cor oficial dos táxis da cidade – aposentado, mas capaz de receber sinais para mais uma corrida na rua. O Jura sempre mostrou o sinal negativo com o polegar através do para-brisa para quem esticava o braço da calçada (junto, um sorriso sincero), e o positivo para ele mesmo. Ao completar 15 anos de sobriedade, me convidou para lhe entregar a ficha de sobriedade do AA. Com  um tempo a mais na caminhada, agora, ao relembrar, me emociono mais. Que presente a vida me deu! Um deles foi ter conhecido meu amigo, espírita, que está lendo isso aqui e sabe do que estou falando. Os encontros. O que interessa. Jurandir se foi como consequência do tempo quando se perdeu na tentativa de se encontrar. Talvez não tenha se cuidado da parte física. O corpo humano é muito, muito forte. Algumas sequelas que ficam para alguns precisam ser cuidadas com muito carinho. Até isso, nesta partida, ele ensinou, ou seja, a como não fazer. Amém.

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