7:32Tele-humanidade

por Ricardo Araújo Pereira

Descobrir o significado de frases que eram comuns há uns 20 anos é agora trabalho de historiadores.
Por exemplo, “discar um número”, expressão oriunda do longínquo tempo em que os números, num telefone, figuravam num disco.

Era o tempo em que, quando o telefone tocava, perguntávamos “quem será?”, porque o nome de quem contatava não estava escrito no mostrador (até porque não havia nenhum mostrador).

Mesmo algumas frases que se mantêm, tais como “se pretende informações, aperte 1”, são resquícios de um tempo em que as teclas do telefone se apertavam —verbo que hoje é exagerado, uma vez que, em geral, nem há teclas nem, em rigor, se aperta uma imagem.

Ah, fascinantes arqueologias linguísticas! Todas elas relativas, curiosamente, ao universo dos telefones. A humanidade resolveu desenvolver o telefone com um empenho que não dedicou a qualquer outro objeto. Isso se deve, provavelmente, ao fato de a humanidade ter descoberto que não gosta de calor humano.

Toda a gente preza calor humano em teoria, mas na prática ninguém o estima. Isso é especialmente evidente quando —e este é um dos casos em que a crueza do exemplo é desculpada pela pertinência da observação— quando, eu dizia, nos sentamos na privada e a argola do assento ainda está morna por causa do utilizador que nos antecedeu.

Ninguém aprecia a sensação e, no entanto, aquilo que nos repugna não pode ser definido de outra forma: é, sem dúvida nenhuma, calor humano.

Sucede então que a humanidade não gosta de calor humano, mas gosta de frieza humana. Nada contra o contato com outros seres humanos, desde que seja à distância. Donde, o telefone.

A melhor qualidade de um produto é, aliás, oferecer ao consumidor a possibilidade de não sair de casa. Trabalhe a partir de casa, adquira esse sistema de cinema em casa, agora já pode ir à academia sem sair de casa.

O que significa que, além do telefone, a casa também mudou muito. Antigamente, o que se valorizava eram os pretextos para sair de casa. Aliás, sair de vez em quando de casa era uma condição essencial para suportar melhor a vida em casa.

Tendo em conta a nova realidade, não sei para onde vai o mundo. Mas, em princípio, é para casa.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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