16:07Vala dos hipócritas

por J.D. Oliveira 

A par os seus acertos, já não são poucos os que acham que a Lava Jato produziu (e continua produzindo!) uma inquisição de fazer inveja à implacável escola espanhola, que tanta fogueira e tantos condenados enfileirou que nem se pode contar. E como toda inquisição tem um mentor, esse papel ninguém jamais poderá negar ao ex-juiz Sergio Moro, goste-se ou não dele. As revelações sobre o “modus operandi” de juiz e procuradores destruíram a imagem inocente que se fazia de “desinteressados” e “independentes”, que buscavam apenas a aplicação da justiça.

Pergunta-se, apenas para clarear o raciocínio: os fins justificam os meios? A resposta, em democracias, é uma só. Menos para quem mergulhou fundo nas águas turvas da bisbilhotagem alheia, sem limites nem escrúpulos.

Também é preciso lembrar que o lance mais espetacular, que chamou a atenção geral foi um PowerPoint. A rigor, tudo nasceu ali. O messianismo do procurador Deltan Dallagnol virou meme, chocou alguns, mas foi servido com farinha para uma imprensa ávida por dar nomes aos bois. Ninguém se preocupou em “checar os fatos”, ouvir o outro lado, apurar a pauta, questionar afirmações. Deu-se tudo por verdade e as manchetes trombetearam o que o PowerPoint apresentou.

Nem aí Dallagnol foi original. O primeiro PowerPoint de que se tem notícia foi produzido pelo genial (este, sim!) Dante Alighieri, entre os anos de 1307 e 1320, o tempo que levou para escrever A Divina Comédia, depois de ter sido, entre outras coisas, governador de Florença por apenas 60 dias, em 1300. Perseguido, processado e condenado sem motivo e sem provas, Dante preferiu o exílio em Ravena – o que, se sepultou a sua carreira política, fez um bem danado à literatura mundial.

Pois vem exatamente de A Divina Comédia o primeiro PowerPoint da história, setecentos anos antes do Vale do Silício produzir a sua ferramenta cibernética. E é inevitável visitar o “esquema” de Dante para o livro mais destacado da Comédia, o Inferno. De cara, chama a atenção o nível onde estão os que cometeram o pecado da Fraude Simples. Mais precisamente, o Círculo VIII, Vala 6, Canto XXIII, que trata dos Hipócritas.

Os penitentes desfilam aqui com pesadas capas de chumbo, qual togas, douradas por fora, mas ainda assim capazes de argumentar com o visitante Dante e seu mestre, Virgílio. A referência à fábula da rã e do rato, de Esopo, é oportuna. No original, a rã induz o rato a se deixar amarrar ao seu corpo para juntos atravessarem uma lagoa. Feito isso, a rã mergulha e o rato, sem conseguir respirar, debate-se desesperadamente. Um falcão, atraído pelo agito da água, intercepta e abocanha os dois. Mas é apenas uma fábula, que não tem nada a ver com a Lava Jato. Ou tem?

O penitente mais famoso da Vala dos Hipócritas é Caifás, o sumo-sacerdote que induziu os fariseus a condenar Jesus Cristo. Não, não estou dizendo que Lula é Cristo. Longe disso. A referência demonstra somente que Caifás pena por ter acusado sem provas. Nessa mesma época, reinava em Roma o imperador Federigo II, que condenava criminosos (incluídos os adversários políticos) a vestir capas de chumbo, expondo-os em seguida à fogueira, até a morte.

O frade Catalan, outro penitente dos Hipócritas, descreve Caifás: “Quel confitto che tu miri, consigliò i Farisei che convenia porre un uom per lo popolo a’ martiri” — O trespassado (Caifás), a quem estás atento, aos fariseus ditou ser-lhes azado pôr, pelo povo, um homem (Jesus Cristo) ao tormento.

A pena de Caifás é agravada. Além da capa de chumbo, ele está sempre estatelado no chão, tendo que suportar o peso de todos os que passam pela vala, sejam visitantes ou penitentes.

No tempo corrente, algumas culpas já foram atribuídas, mas outras ainda estão em apuração. Mesmo que não se reconheça a “autenticidade” de certas conversas, certamente as motivações podem ficar mais claras. Para o bem e para o mal.

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