6:40O cheiro do café guarda muitos segredos

por Thea Tavares

Estava a ponto de reclamar de um comerciante, do seu atendimento péssimo, do seu mau humor abusivo… Em uma sociedade na qual vivemos driblando ódios, manifestações agressivas e desrespeitos diversos, a toxidade dos seus comentários e de suas opiniões grosseiras estava me incomodando, afetando o meu dia, sugando energia e minando a minha paz de espírito. Era uma violência cotidiana e desnecessária. Eu não tinha um único fio de saúde que me permitisse tolerar sem queixas aquele mal estar.

Percebi que outros clientes, talvez por conviverem há mais tempo com aquela situação, até levavam na esportiva. Ouvi um deles, certa vez, rotular o comerciante de “bipolar” e fazer piada do fato. Falou isso diretamente e com a maior naturalidade ao pai do proprietário do estabelecimento, uma vez que os dois – pai e filho – se revezavam em atendimento ao público no balcão. De vez em quando, a mãe do “Zangado” dava as caras por ali também, mas ela, como legítima representante das mulheres de algumas gerações atrás da minha, atuava nos bastidores do comércio da família. Possuía o dom herdado culturalmente da invisibilidade.

Olhando para o casal, pai e mãe idosos, atenciosos e simpáticos, não era possível rastrear o DNA daquela grosseria. O homem ranzinza não parecia ter puxado a nenhum dos pais. Seria filho de chocadeira, como a gente costumava dizer no século passado? Não fosse pelos velhos, não frequentaria mais aquele estabelecimento. Mas o café… Hum! Tinha aroma e sabor de literatura da adolescência. Trazia de volta os cafés colombianos de Garcia Marques, os de Maricá, a Clarissa de Érico Veríssimo, que nem sei dizer se algum dia ou em suas páginas é mencionado que tomou ou saboreou café. Mas é preciso dar um desconto às memórias quando me vejo nesse emaranhado de simbologias trazidas pela fumaça e pelo cheirinho do café fresco do estabelecimento. A essa altura do campeonato, as lembranças se embaralharam tanto, que restaram apenas as sensações. E aquele café de lá tinha mesmo gosto e cheiro de literatura.

Por isso que o mal estar não combinava em nada com o prazer de tomar café, se embriagar das mais deliciosas sensações e memórias. Não cabiam os dois naquele mesmo espaço. Aproveitei um dia com um pouco mais de tempo sobrando no relógio para conversar com o senhor simpático que era também dono do estabelecimento. Conversa vai e vem, o assunto chegou a um colégio em que o filho rabugento estudou para se tornar técnico agrícola. Foi nessa hora que o pai abriu o maior dos sorrisos para se vangloriar de uma atitude sua no passado, que definiu todo o curso da vida – se é que dá para se chamar assim – do mal humorado filho. – Ele não sabe, mas eu mudei ele de escola porque estava se enrabichando por uma moça, filha de um fazendeiro da região.

O “mudar de escola” significou, na adolescência do rapaz, transferir ele de sua cidade natal, no interior do Paraná, para uma outra, no Rio Grande do Sul, a aproximadamente mil quilômetros de distância e onde viviam parentes por parte da mãe. Significou um rompimento abrupto e muito doloroso para os jovens. O desvio nos planos profissionais do menino. As razões nas quais os pais se apoiaram para arquitetarem a separação e interferirem de forma tão radical na paixão dos adolescentes podem deter inúmeras e aceitáveis justificativas. Com toda a certeza deste mundo, o pai se vangloria da sua decisão firme, de ter agido de maneira assertiva, munido dos argumentos e valores do seu tempo, com a responsabilidade e o bom desempenho do papel de pai, conforme lhe cabia e era convencionado fazer naquela época.

Até hoje, ao sorrir vitorioso de seu feito, ele sequer cogita ter cometido algum equívoco ou jamais formulará dúvidas sobre como deveria intervir na situação. Apenas fez. Que pessoa era o estudante antes da mudança´e o que projetava ser? Que vida o casal teria, caso continuasse a se encontrar às escondidas, pelas dependências do colégio? Quanto duraria aquela pegação toda? Que experiências e que humor teria o filho do comerciante se tivesse tido a liberdade ou oportunidade de se conhecer enquanto namorado, amante, marido de alguém? Não sei da moça, a filha do fazendeiro, mas o rapaz, hoje um senhor rabugento com mais de meio século de existência, parou naquele tempo. Não encontrou outra pessoa para dividir com ele esta nossa jornada. A julgar pelo humor, passa muito longe de encontrar.

Mas a vida se reinventa e prega sempre das suas peças. Da mesma forma que não revela ao filho como arquitetou sua separação, o velho também não tem a coragem de dizer ao “bipolar” que sabe a continuação dessa história. Há poucos dias, uma funcionária da cozinha revelou que o filho havia descoberto na rede social o perfil da sua antiga amada e que vinha se comunicando com ela “in box”, ou seja, nos espaços reservados dos canais de interação da internet, por aplicativo de telefonia celular, e que havia trocado já várias mensagens com a mulher do seu passado. Sempre de forma fortuita e escondida da família.

A revolta que eu sentia pelo comerciante rabugento deu lugar à tristeza solidária, assim que conheci a origem daquela personalidade irritante. Logo se transformou em uma torcida esperançosa para que a vida e o tempo consigam ainda organizar a bagunça deixada pelo amor e pela incompreensão do que signifique amar naquela família. Essa transformação não deixa também de ser meu instinto egoísta de sobrevivência fazendo peripécias para que o café do estabelecimento tenha de novo o cheiro e as saudades da minha literatura juvenil.

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