18:05ZÉ DA SILVA

Saí da gafieira e o sapato bicolor andava sem o meu comando. Brisa lambendo fachadas de prédios antigos. Sentei na cama da pensão barata e lembrei que gente famosa também fez isso em tempos remotos. Olhei o relógio, única herança do pai, único bem valioso. Olhei a caixa de papelão amarrada com barbante. Desfiz o laço. Tive coragem depois de anos. Fotos, cartas, uma vela de primeira comunhão, convites. No fundo desse baú da memória, um pedaço de papelão cortado a mão. Nada escrito de um lado. Do outro, em letras garranchais, o recado: “Verdade ou mentira, não sei. Só sei que vai dar merda”. Deu porque eu estava ali já atravessando o Cabo da Boa Esperança  – e o que fiz? Enganei e me enganei, mesmo sem querer. Como se estivesse dançando durante toda a vida ao som do clarinete de Paulo Moura e sem querer saber o que acontecia fora do salão. Um dia tentei ver, mas quebrei a cara na tela de uma aparelho celular. Arrisquei me adaptar. Não deu. Porque também descobri que a evolução humana continuou – e o homem de hoje evacua por dois buracos. Aí, desisti. E danço, para passar o tempo.

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