8:51Polifonia de piedade e terror

por Mario Sergio Conti

Marina tinha quatro anos quando os alemães invadiram a União Soviética. Perdeu-se dos pais e foi levada para um orfanato. Não sabia nem o seu sobrenome: “Queria que alguém me abraçasse, fizesse carinho. Mas havia pouco carinho, ao redor acontecia uma guerra”.

Marina um dia perseguiu na rua uma mãe com dois filhos: “Eles sentaram no banquinho e ela pôs o menor nos joelhos. Eu fiquei parada, parada. Olhando, olhando. Me aproximei deles: ‘Tia, me põe no colo?’. Ela se espantou. E pedi de novo: ‘Tia, por favor…'”.

Dima, que tinha cinco anos, lembra: “A filha da vizinha tinha achado uma granada. E começou a embalar, feito uma boneca. Enrolou uns trapos e embalava. Uma granada é pequena como um brinquedo, só que pesada. A mãe não conseguiu correr a tempo…”.

Vera, de 13 anos, era prima de uma moça grávida, casada com um partisan. Ele foi delatado e os alemães juntaram o povo na praça. Fizeram uma forca, ordenaram que ninguém chorasse. A prima tinha uma trança longa. Afastou-a quando passaram a corda no seu pescoço.

Vera lembra: “As mulheres gritavam sem lágrimas, gritavam só com a voz. Não permitiam chorar. Chegavam perto de quem estava chorando e matavam. Adolescentes de 16, 17 anos, mataram com um tiro. Estavam chorando. Tão jovens… Ainda não tinham noivado, não eram soldados”.

“As Últimas Testemunhas – Crianças na Segunda Guerra Mundial” (Companhia das Letras, 271 págs.) tem dezenas de relatos assim. Como consta na justificativa do Nobel de literatura à sua autora, Svetlana Aleksiévitch, eles formam “um monumento ao sofrimento e à coragem em nosso tempo”.

Os nazistas mataram milhões de crianças nas repúblicas soviéticas. Por 25 anos, Aleksiévitch entrevistou pessoas que viveram a guerra na infância. Regeu então a polifonia de vozes que capta o medo, o desamparo, a solidão das crianças. Piedade e terror percorrem o livro.

Hegel escreveu que o particular é o geral e vice-versa. Como uma condição é mediada pela outra, o todo se cristaliza numa constelação de individualidades. É dessa dialética que “As Últimas Testemunhas” extrai sua extraordinária produtividade estética. Mas não busca uma síntese.

A particularidade das vozes infantis nega a harmonia sinfônica das altas esferas. No livro não há Hitler, estratégias, Stálin, geopolítica. O que se escuta é o coro dissonante dos pequenos, perplexos —pranto concreto que incrimina a gloriosa guerra dos grandes.

O todo é engodo. Por isso, no único momento em que Aleksiévitch interfere no testemunho dos velhos, que agora beiram a morte, ela cita Ivan Karamázov: nenhuma guerra justifica as lágrimas de crianças inocentes.

Por que ler essa seleta de horrores, tão distantes do que costumamos entender por infância? Não basta a tristeza ao redor? Metade das crianças brasileiras, segundo o Unicef, não tem pelo menos um dos seus direitos básicos: morar numa casa com água e esgoto, estudar, não trabalhar.

Por falta de cuidados mínimos, 23 mil meninas e meninos morreram no ano passado —adoeceram e pereceram porque eram pobres. Mais de 18 milhões de crianças medram na indigência. Você as vê todo dia na rua. Talvez tenha visto algum dos 10 mil adolescentes assassinados num ano.

Por que então ouvir essas crianças russas perdidas no passado? Pode ser que Nina saiba a resposta. Ela tinha seis anos quando os nazistas vieram. No tumulto, viu-se sozinha no mundo com o irmão menor. Vagavam, fugiam dos alemães, dormiam onde dava, tinham fome, muita fome.

Até que sentiram um cheiro de torta vindo de uma casa vazia. Entraram e comeram uns bocados. Aguardaram que alguém voltasse para explicar que não roubaram nada. Chegou uma mulher, que ouviu sua história e lhes disse: “Vocês serão meus filhos”.

A mulher era carinhosa, lhes dava beijos de boa noite. Os irmãos decidiram: “Chamaríamos a nova tia de mãe”. Numa manhã, saíram para colher frutas silvestres. Estavam fora quando os nazistas retornaram.

“Queimaram a aldeia. Todas as pessoas também. Inclusive nossa nova tia. Sentamos numa colina e ficamos olhando o fogo. Para onde ir? Como encontrar uma nova tia?” Partisans passaram e pegaram a menina e o irmão. Aleksiévitch perguntou-lhe o que reteve da guerra. Nina respondeu:

“Eu e meu irmão crescemos entre pessoas desconhecidas. Pessoas desconhecidas nos salvaram. Mas como elas seriam desconhecidas para mim? Todas as pessoas estão ligadas. Vivo com esse sentimento, mesmo que muitas vezes me decepcione. A vida em tempo de paz é diferente”.

*Publicado na Folha de S.Paulo

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