7:08Revolução de Outubro, 100 anos

por Ivan Schmidt 

No dia 7 de novembro de 1917 a Duma Municipal de Petrogrado, hoje São Petersburgo, criou o comitê de segurança pública integrado por membros de várias outras organizações que se proclamavam revolucionárias, declarando-se em sessão permanente no edifício da instituição.

Tempos depois, o jornalista norte-americano John Reed, ele também um militante socialista que estava na Rússia a serviço da imprensa de seu país, no momento mais efervescente da tomada do Palácio de Inverno pelos revolucionários, escreveria no clássico Os dez dias que abalaram o mundo, uma estupenda reportagem sobre a Revolução de Outubro, que a decisão representava uma declaração de guerra contra os bolcheviques, à época integrados ao governo provisório chefiado por Aleksandr Fiódorovitch Kerenski.

Os bolcheviques haviam ocupado a Central Telefônica, a Estação Báltica e a Agência Telegráfica, ao passo que alguns ministros haviam sido presos e Meyer, chefe da milícia municipal, fora fuzilado.

A confusão era generalizada e por toda parte pessoas eram presas e muitas outras libertadas, registrando-se choques contínuos entre patrulhas de soldados, revolucionários e Guardas Vermelhos. Os membros do governo provisório estavam entre os detidos por soldados armados.

Toda a atenção se dirigia ao Palácio de Inverno, onde se instalara Kerenski e os principais assessores. Reed descreve como conseguiu se aproximar do palácio e nele entrar, simplesmente exibindo aos guardas seu passaporte norte-americano: “Diante da porta de Kerenski estava um oficial ainda jovem, mordendo o bigode nervosamente. Indaguei se era possível entrevistar o presidente do conselho”, mas o oficial respondeu que o ministro estava muito ocupado no momento, quando na verdade ele já havia escapado do palácio.

Reed foi informado que logo os bolcheviques iriam invadir o Palácio de Inverno, mas alguns cadetes que estavam por ali disseram que se os bolcheviques viessem “nós lhes mostraremos como se combate. São uns patifes. Têm medo de lutar. Mas, se porventura formos vencidos, cada um de nós guardará uma bala para si mesmo”.

Nesse momento ouviu-se um tiroteio bem perto e na praça fronteira ao palácio muitos fugiam e outros se deitavam no chão.

“Os bondes não trafegavam mais” escreveu Reed. As ruas estavam desertas e as luzes apagadas. “Pouco adiante víamos os bondes passando, a multidão, a fachada das casas iluminadas, os anúncios luminosos na fachada dos cinemas. A vida continuava como de costume. Tínhamos conosco entradas para o espetáculo de balé do Teatro Maria. Aliás, todos os teatros davam espetáculos”.

A derrubada do governo provisório estava em plena marcha e a cidade parecia nem notar o que acontecia. Soldados armaram uma peça de artilharia, pronta para disparar, diante do Palácio Stroganof, enquanto “grupos de homens, com uniformes diferentes, iam e vinham sem saber que rumo tomar, discutindo ininterruptamente”, anotou o atento repórter para concluir que “tinha-se a impressão de que toda a cidade viera passear na Avenida Niévski”.

“Em cada esquina, uma multidão discutia acaloradamente. Em cada cruzamento, piquetes de dez ou mais soldados montavam guarda. Homens já velhos, envolvidos em luxuosos capotes de pele, rubros de cólera, levantavam os punhos fechados para os soldados, numa ameaça impotente. Mulheres elegantes injuriavam a tropa. Os soldados respondiam delicadamente, atrapalhados, confusos”… A descrição é mais apropriada às colunas sociais do que evidentemente a uma crônica de guerra.

No Smólni reinava uma febril atmosfera de agitação, relata John Reed, que chegou ao edifício pouco depois do encerramento da sessão extraordinária do Soviete de Petrogrado. “Fiz Kamenev parar. Pequeno, movimentos vivos, rosto largo e expressivo, quase sem pescoço, Kamenev traduziu-me rapidamente para o francês a resolução que acabava de ser aprovada: o Soviete dos deputados operários e soldados de Petrogrado saúda a revolução vitoriosa do proletariado e da guarnição de Petrogrado. Ao mesmo tempo deseja salientar, em particular, a união, a organização, a disciplina e cooperação admiráveis das massas, durante a sublevação. Poucas revoluções venceram com tão pequeno derramamento de sangue, tão rapidamente e de maneira tão completa”.

O documento se espraiava por mais alguns parágrafos para encerrar com uma peroração triunfalista que o ufanismo daqueles dias não cogitou em considerar utópica, fato que viria fatalmente a ocorrer somente alguns anos depois: “O Soviete igualmente está seguro de que o proletariado dos países da Europa Ocidental auxiliará o proletariado russo na transformação social da Rússia, até a vitória completa e definitiva do socialismo em todo o mundo”.

Em meio à discórdia entre as facções, o medo e a dúvida quanto ao que poderia acontecer nos próximos dias, numa sessão do Comitê Militar Revolucionário, a voz de Leon Trostki fez-se ouvir com autoridade: “O governo provisório não mais existia”. E acrescentou: “Nós, o Soviete dos Deputados, Operários, Soldados e Camponeses, vamos fazer uma experiência sem precedentes na história. Vamos criar um governo cuja finalidade única será satisfazer as necessidades dos operários, dos soldados e dos camponeses”.

Lenin foi recebido com extraordinária ovação, escreveu Reed e ao profetizar a revolução social no mundo inteiro, foi aparteado aos gritos por Zinoviev: “Hoje pagamos uma dívida ao proletariado internacional. Assestamos terrível golpe na guerra. Desferimos terrível golpe em todos os imperialismos, particularmente no imperialismo alemão, em Guilherme II, o carrasco”.

O núcleo fiel a Kerenski foi substituído no Soviete por um bloco bolchevique no qual se destacavam Trotski, Kamenev, Lunatcharski, Kolontai e Nóguin e o incansável John Reed assim registrou a cena memorável: “A sala inteira ergueu-se numa tempestade entusiástica de aplausos. Os bolcheviques eram uma seita desprezada e perseguida quatro meses atrás. E, agora, estavam no posto supremo, no leme da imensa Rússia em plena insurreição!”.

A guerra civil explodiu nas ruas e o ribombar dos canhões fazia estremecer os vidros das janelas das casas e, claro, do prédio em que se reunia o congresso dos Sovietes, enquanto lá dentro os deputados discutiam e se insultavam.

Reed resumiu: “Foi assim, sob o troar da artilharia, na obscuridade, no meio de ódios, de medo e da mais temerária das audácias, que nasceu a nova Rússia”.

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