5:50Piscifônica

por Fernando Muniz

 Pai, mãe, filho, filhas e sogra caminham sem pressa entre galerias e esculturas de Inhotim, museu a céu aberto misturado a minas de ferro, rodovias confusas e cidadezinhas no interior de Minas Gerais.

Naquele final de manhã cheio de sol, em que uma brisa desce dos morros ao redor, a família encontra uma construção inusitada.

Uma piscina convida a todos a cair nela, de cabeça. Ao lado espicha-se um piso branco, com as mesmas dimensões, como se fosse um deck e, na junção do piso com da piscina, uma escada guia quem não quiser mergulhar, até o fundo.

Nos degraus estão gravadas letras do alfabeto romano, em séries que começam com AB, depois CD, EF até YZ. O pai fica impressionado com aquele conjunto e se põe a refletir sobre o que significaria.

O filho, da mesma forma, olha para aquilo, sem entender e pergunta:

– Pai, que que é isso? – e o pai, após alguns instantes de meditação intensa, tira uma conclusão em voz alta:

– As palavras te levam às profundezas, filho – feliz em ter tido aquele pensamento que soa feito punhal de duas lâminas, ambíguo e perigoso, a insinuar glórias inauditas e, ao mesmo tempo, fossas abissais, feito os mistérios da natureza humana.

A mãe, sem saber o que pai e filho conversavam, preocupada com o alvoroço das filhas à beira da piscina, foi atrás de um rapazinho mirrado, meio escondido perto de uma árvore, a zelar pelas boias e coletes salva-vidas fornecidos pela administração do museu.

Ao voltar para perto da família, boias em punho, pergunta ao marido e filho:

– Sabem o que essa obra significa? – momento em que o filho, exultante, explica:

– As palavras nos levam às profundezas, mamãe – ao que ela, pacienciosa, replica:

– Não sei não, o moço que cuida dessa obra me disse que o artista pensou em uma junção de piscina com agenda telefônica… isso é uma piscifônica! – e desatou a rir, divertida com a intenção do artista e pela junção de palavras, porém essa resposta deixa o filho sem saber o que a mãe havia dito, pois nunca na vida teve contato com cadernos onde anotamos nomes e telefones, ao passo que o pai se entristece por reconhecer seu pedantismo atroz.

As filhas, durante todo aquele tempo, queriam mesmo é se jogar naquela obra de arte, doidas para se refrescar. Porém, diante dos nãos recebidos, trataram de correr para um gramado ao lado da piscifônica, pontilhado por vasos de argila em forma de letras do alfabeto, soltos, a convidar os visitantes às mais diversas articulações.

Juntam os vasos com flores amarelas de um lado, os com flores vermelhas de outro e os com flores brancas logo adiante, supostamente palavras, na verdade XCVVVVR ou JUCOOOOOP, e, assim que terminam, chamam o irmão para ver.

– Mano, olha só, escrevemos o nome da mamãe e do papai! – o garoto chega perto das palavras, franze os olhos e solta uma gargalhada.

– Mas isso… parece chiado de televisão!!

– Não é não!

E saem a correr entre os visitantes, em uma algazarra feliz, que quase tira o pai da sua fossa acadêmica.

A sogra ri com a correria da criançada, nem aí para os olhares desaprovadores dos demais visitantes, entretidos em desvendar o inescrutável significado daqueles vasos e flores esparramados pelo gramado. Olha para o céu e roga que os netos possam crescer saudáveis e intensos em suas descobertas, a salvo daquela gentalha posuda e tóxica.

Trata de sair do sol. Nota que o genro alcançou a sua filha e ajuda a conter o entusiasmo das crianças, o que a tranquiliza. Ele abre um guarda-chuva, todo atrapalhado e a abraça. Apaixonados. Ela deixa escapar um sorriso terno.

Afasta-se daquela poça d´água azul, a seu ver jeca que dói. Visita mais três instalações, esculturas ou coisa que o valha, uma delas pouco mais que um barraco de zinco, com stands a expor riyals sauditas, livros velhos e bandeiras exóticas, tudo a invocar palmeiras, e, num canto, uma TV a explicar didaticamente por que as palmeiras nativas dos atóis do Pacífico resistem até a explosões nucleares, conjunto que a faz cogitar que diabo de “narrativa” seu genro PhD os brindaria desta vez.

Logo adiante, num galpão com as paredes pintadas de preto, sem qualquer ponto de luz salvo um aviso de saída de incêndio, dezenas de velas em forma de prédios e monumentos ardem sobre uma grande mesa, tal qual Roma em chamas. Parece que a intenção do escultor, performer ou qual seja o nome dado ao que faz da vida, foi retratar Havana. Conseguiu produzir uma sauna à luz de velas, perfeita para os netos queimar os dedos.

No instante em que o resto da família se acomoda para assistir ao vídeo das superpalmeiras, encontra uma floresta de vergalhões, de diversos tamanhos e diâmetros, cravados na terra nua, uns desbotados, outros carcomidos pela ferrugem, alguns em pé, alguns pendendo para um lado ou outro e, apesar de o sol estar a pino e a brisa ter sumido, o conjunto a impressiona.

Sente um alívio, melhor, uma fisgada, na alma. Naqueles cafundós do Judas, junto a tanto entulho, empulhação e cafonice, existe arte. Rude, subversiva, fruto de uma mente iconoclasta. Salvadora.

Corre buscar os netos; eles não podem ir embora sem ver aquela floresta. E a filha também. E o genro.

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