11:30HELÔ E ABÊ

heloabe

Rogério Distéfano

VERNISSAGE dos quadros da amiga, tinha que ir, já antecipava o vinho barato, salgadinhos secos e frios – nesse ambiente chamam-se canapés -, conversa chata, gente que fala de perto, hálito empestado, a aspergir ticos de comida, intelectuais pretensiosos, críticos ora andróginos, ora misóginos, a fauna de sempre. Sua intenção, os quatro esses: surgir, saudar, sorrir e sumir. Até que no estreito espaço dos vultos foi ela quem surgiu e sorriu, estupenda e discreta, primor de contradições: olhos azuis, cabelos negros, crespos, 1,70, tudo nos exatos lugares e proporções, boca sensual, nariz perfeito e os dentes, colar de pérolas incrustadas nas gengivas.

Copo de vinho na mão, intocado, sem a marca do batom forte nas bordas. “Azul da cor do mar”, ele chegou, sem cerimônia. “Seus olhos”, resposta à interrogação sem palavras. “Ogni riccio um capriccio”, exibiu-se no italiano para os cabelos, em cada crespo um capricho, que traduziu de jeito maroto, “nos seus cachos eu me encaixo”. “Helô, de Heloísa”, ela se apresenta. “Abê, de Abelardo”, ele brinca, “como no amor impossível, do século XII”. Ele estava para quem viesse e desse, divorciado há pouco, à procura da ex-mulher na mulher dos outros; ela, no recreio do casamento burocrático, sempre a ajeitar os cabelos, na mão esquerda, duas alianças.

Ficaram na exposição até o desmonte dos cavaletes, atração de corpo e espírito. Depois, só a internet, zapzap, msn,  e-mail – nem um piedoso skype ou o tantalizante telefone. Seis meses de platonismo virtual, Abê a esbaldar-se no verbo e na lira roubada ao francês meloso Paul Geraldy – aprendeu com o amigo que verseja para moças do comércio, que troca os ais do tálamo pelos ais do parnaso. Um dia, a mensagem peremptória: “Meu marido morreu, infarto fulminante”. Abê desmancha-se em lamentos sinceros, sem conhecer tinha-se como amigo platônico do marido. O amor por Abê ela o sepultou com o marido.

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