6:47Um escritor de largo alcance

por Ivan Schmidt

Saudosista dos bons me sinto um verdadeiro peixe fora d’água (e consigo entender melhor o significado da expressão popular) cada vez que entro numa dessas livrarias incrementadas de hoje em dia, com a extasiante oferta de autores ditos modernos, alguns deles com 15, 20 ou mais títulos diferentes empilhados lado a lado (em minha modesta avaliação escritos por redatores profissionais) e publicados como se fossem na realidade produzidos pelos midiáticos frequentadores das listas dos mais vendidos.

Por isso tenho preferido as livrarias de usados (Curitiba está muito bem servida no quesito), pois nelas encontro toda aquela galera que adubou a imaginação dos jovens mal saídos da adolescência nos anos 50 e 60 do século passado e como novos conhecedores da fórmula matemática da quadratura do círculo punham-se bravamente a palmilhar as sendas abertas por William Faulkner, Ernest Hemingway e Scott Fitzgerald (Estados Unidos), Somerset Maugham, D. H. Lawrence e Graham Greene (Inglaterra) e Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus (França), entre tantos outros.

Quando apareceu o Ulisses de Joyce, em 1965, traduzido pelo filólogo e dicionarista Antonio Houaiss, foi como se a bastilha que condenava o Brasil à obscuridade literária tivesse sido finalmente posta abaixo.

Na feira de livros universitários do ano passado, no adro do prédio histórico da Universidade Federal do Paraná, comprei com um belo desconto sobre o preço de catálogo, um exemplar capa dura de Sartoris, um dos muitos romances de William Faulkner, só agora traduzido por Claudio Alves Marcondes e editado pela CosacNaify, casa que há poucos meses anunciou a paralisação das atividades certamente tragada pela onda avassaladora da crise que destruiu a economia nacional. Essas coisas o pessoal que defende a cultura não vê…

Já havia lido pelo menos uma meia dúzia de romances de Faulkner, começando com Os desgarrados (Civilização Brasileira, RJ), que descobri em leitura recentíssima ter sido o último a ser escrito pelo criador do condado fictício de Yoknapatawpha, no Mississippi, estado sulino onde o autor nasceu em 1897, na cidade de New Albany.

Sartoris, publicado em 1929, pouco antes de O som e a fúria, do qual tinha conhecimento pela leitura da bibliografia do autor, pelo que me concerne somente agora está ao alcance de leitores de língua portuguesa. A CosacNaify providenciou também nova tradução e edição da igualmente preciosa joia Luz em agosto, em que a prosa refinada de Faulkner e sua copiosa capacidade de criar alcançam uma plenitude sem igual.

Dentre os tantos títulos do gênio que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1949 – O som e a fúria, Paga de soldado, Palmeiras selvagens, Absalão, Absalão, Santuário e Enquanto agonizo – em lançamentos da Civilização Brasileira e Nova Fronteira como escrevi, com a disposição de um garimpeiro de sorte que não desiste da busca podem ser encontrados nos sebos curitibanos.  

Primeiro romance situado no condado fictício de Yoknapatawpha, Faulkner parece ter encontrado em Sartoris a linha mestra para as tramas ainda reservadas para a fruição dos apreciadores do gênero em futuro breve, como frutos maduros e saborosos da fertilidade inesgotável dos anos 40 e 50, quando a literatura produzida na Europa e Estados Unidos, especialmente, teve seu encontro definitivo com o modernismo.

A propósito disso, o crítico Malcolm Bradbury, em O romance americano moderno (Jorge Zahar Editor, RJ, 1991) relatava que “ninguém precisava ir à Europa nem ter lutado em qualquer batalha para sentir essa sensação de mudança e de separação de gerações; ela se tornaria parte da cultura norte-americana da década. Na verdade, muitos escritores norte-americanos haviam efetivamente participado da guerra, como se se tratasse de uma experiência educativa e literária. Um número significativo deles serviu como soldados ou integrantes do corpo de ambulâncias na Europa, eventualmente estabelecendo ligações entre seus primeiros ‘encontros’ pós-adolescentes com a vida”.

A exemplo de John Dos Passos, Ernest Hemingway, E. E. Cummings e Edmund Wilson, todos eles romancistas surgidos nos anos 20, que segundo Bradbury serviram em ambulâncias “William Faulkner foi treinado na Real Força Aérea do Canadá, e viria encorajar a lenda de que servira como piloto na França”.

Profundo admirador do estilo de Sherwood Anderson, um romancista do período pouco mais velho (Sartoris seria dedicado a ele), que conheceu em Nova Orleans no afamado ambiente boêmio, Faulkner passou a ser considerado pela crítica apenas um escritor sulista, “produto tardio e complexo de suas tradições românticas, de sua celebração do heroísmo e do cavalheirismo, seu idealismo, suas instituições semifeudais, sua arraigada luta contra a industrialização, suas derrotas, dores e ansiedades”, segundo Bradbury.

Contudo, diz ainda o crítico, não passaria muito tempo até que seu nome despontasse entre as grandes figuras da experiência moderna internacional, como “escritor com largo alcance, potencialidade e preocupações formais que associamos com Joyce, Proust ou Virgínia Woolf, um experimentador, um simbolista, uma testemunha do exílio moderno”.

Em 1929, no romance Sartoris o escritor transparecia a evidência do regresso ao lar, tratando os temas essenciais do enredo numa dimensão histórica e social mais ampla e  nativa do Mississippi, que conhecia tão bem quanto seu próprio passado. Segundo Bradbury é um romance mais profundamente estruturado que os anteriores, sendo marcante o envolvimento social que explora a comunidade em muitos níveis: “Dele nasce o condado de Yoknapatawpha, a versão local, mississipiana, que Faulkner fez do Wessex de Hardy, uma complexa sociedade inventada, colocada sobre outra, real, que ele haveria de reorganizar, alterar e complicar ao longo da maior parte de seus romances”.

Pululavam em Jefferson, a sede do condado e seu mundo característico de aristocratas decadentes, carreiristas políticos, colonos e empresários, seus negros e seus coros permanentes de mexeriqueiras, com seus bosques, tardes de pilequinhos, caçadas de ursos e maldição histórica específica nascida da posse de terras indígenas, a história da escravidão e as profundas feridas da guerra de Secessão, conferindo ao cenário da ficção faulkneriana uma veraz estrutura racial classista em debate com suas agonias interiores e processos de transformação histórica, no sentido do comercialismo e do industrialismo. A apreciação convincente é do autor do livro O romance americano moderno.

As cambiantes narradas no romance ambientado no mundo do pós-primeira guerra, no Sul dos Estados Unidos, por si só uma região sempre à beira do conflito, mostram o reaparecimento do jovem ex-piloto Bayard Sartoris, visivelmente “inseguro quanto a sua virilidade e seu lugar na vida, buscando tresloucadamente sua morte masculina em máquinas modernas”.

Faulkner maneja seus personagens com habilidade na montagem de uma trama romanesca que mescla passado e presente, ou seja, a explosiva coragem dos ancestrais aristocratas sulistas em comparação com o estilo degradado de vida que se ostentava agora. Em outras palavras, um contraste entre o culto ao cavalheirismo do clã sartoriano de homens, ou homofóbico, para usar um termo contemporâneo, versus “o efeminado mundo dos Benbow, delicado, intelectual e em última análise narcisista, em desacordo com a ação e o tempo”.

O escritor sulista era, em síntese, um conspícuo analista do comportamento humano que se comprazia em reproduzi-lo com toques histriônicos nas folhas em branco. Certa vez revelou ter descoberto “que escrever era uma coisa muito boa. Você se torna capaz de fazer indivíduos ficarem de pé das pernas traseiras e projetarem sombras. Eu senti que possuía toda aquela gente e, assim que o descobri, senti que queria trazê-los todos de volta”.

Voltaremos ao assunto na próxima semana.

 

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