7:09As razões da maldade

por Ivan Schmidt 

Leitores da filósofa judia-alemã Hannah Arendt, que não são poucos no Brasil e entre os quais me incluo, não terão dificuldade em estabelecer um nexo causal entre o pensamento futuro da então jovem aluna e admiradora de Martin Heidegger, um dos mais importantes pensadores do século 20, que após filiar-se ao partido nazista em 1933 foi nomeado reitor da Universidade de Friburgo.

Hannah tornou-se igualmente respeitável pensadora e é especialmente lembrada pela cunhagem da expressão “a banalidade do mal”, concebida na fase mais produtiva de sua maturidade intelectual como interpretação inteligível das razões até hoje incompreendidas sobre a sanha assassina do nazismo.

No caso, o nexo remete ao artigo assinado pelo jornalista Jacinto Antón na edição brasileira do diário madrilenho El País (11.10), somente disponível na Internet. O título escolhido (“A popularidade do mal”), que o autor não revelou, mas muito provavelmente veio de um insight derivado da obra de Hannah Arendt, não teria sido mais oportuno se não tratasse da permanente atualidade do nazismo, mesmo 70 anos depois do término da Segunda Guerra Mundial e da eliminação física de Adolf Hitler, mas infelizmente não da influência nociva da pérfida ideologia cultivada pelo cabo austríaco.

Segundo Antón, e sua conclusão é mais preocupante pelo fato de que mesmo havendo gente saturada dessas coisas, a respeito do nazismo “o interesse não dá sinais de se esgotar”. Diz ele que “ensaios, romances, memórias, filmes, documentários, exposições e até videogames continuam a nos lembrar dessa fase sinistra da história, transformada num filão”, argumentando a favor de sua tese que “um texto jornalístico com a palavra ‘nazista’ no título inevitavelmente estará entre os mais lidos”.

Para comprovar, sem intenção de esgotar as opções enumera a edição das memórias inéditas de Alfred Rosenberg, além da “nova visão sobre o mundo dos campos de concentração (KL, de Nikolaus Wachsmann), um interessantíssimo livro do especialista Richard Evans – O Terceiro Reich na história e na memória – que oferece novas perspectivas sobre diferentes aspectos do regime (a influência sobre o modelo hitleriano de colonização do Leste, da conquista do Oeste norte-americano via Karl May) e o novo romance de Martin Amis (A zona de interesse, da Companhia das Letras), tão incômodo quanto foi a seu tempo o filme O porteiro da noite, de Liliana Cavani”.

Antón pondera, entretanto, que “isso tudo é só a ponta do iceberg: por baixo há centenas de outras obras – e com certeza muitos subprodutos – que abordam absolutamente qualquer aspecto (real ou imaginário) relacionado ao nazismo, aumentando uma bibliografia já imensa”.

Uma das chaves do inesgotável interesse pelo nazismo, escreveu Jacinto Antón ao apontar como motivo principal do fenômeno psicossocial o fascínio pela maldade, deduzindo que “os nazistas o encarnam como ninguém”. Mesmo admitindo a existência de outros grandes criminosos na história – individuais e coletivos – Antón esclarece que “a conjunção fornecida pelo nazismo de uma grande galeria de mentes perversas e a escala de suas maldades é ímpar. Já se argumentou que os crimes de Stalin, Mao e Pol Pot, para não voltar a Gengis Khan, são comparáveis aos de Hitler e seus sequazes”.

A justificativa para a definição acima e, mais, “o que põe os nazistas numa categoria à parte da perfídia é a atroz particularidade de seu programa: a aniquilação de milhões de seres humanos simplesmente por motivos raciais. E o método industrial usado para atingir esse objetivo. O Holocausto, expressão máxima da maldade hitleriana, está indubitavelmente no centro de nosso interesse pelo nazismo”.

Algumas perguntas são propostas por Jacinto Antón, sob a alegação pertinente de que o nazismo nos obriga “a perguntarmos o que teríamos feito se vivêssemos naquele tempo, na mesma Alemanha ou fora dela. Teríamos enfrentado o mal ou teríamos contemporizado ou transigido? Teríamos sido corajosos ou covardes? E mesmo: vítimas ou carrascos?”.

Na sua visão a própria atualidade nos incita a revisitar o nazismo: “O extremismo na Grécia e na Hungria, o movimento Pegida alemão, determinadas reações de outros setores à chegada de emigrantes… De maneira polêmica também se aludiu ao nazismo para desqualificar o independentismo catalão”.

Voltando a Hannah Arendt, que na época vivia nos Estados Unidos, no livro resultante da cobertura jornalística por ela feita do julgamento de Eichmann, em Jerusalém, pelos crimes de guerra a ele imputados, a filósofa cunhou a expressão “banalidade do mal”, tendo em vista o recorrente depoimento do prisioneiro acusado da prática de barbárie contra judeus, ciganos, deficientes físicos e homossexuais, entre outros. Eichmann dizia nada mais ter feito senão executar sem discussão as ordens ditadas pelos superiores, alegando sua condição de funcionário subalterno do Terceiro Reich.

Na monumental obra As origens do totalitarismo, ao discorrer sobre o anti-semitismo como instrumento de poder, Hannah fez uma observação criteriosa ao lembrar que o escritor Louis Fernand Celine “elaborou uma tese simples, engenhosa e imaginária que deu ao racional anti-semitismo francês um pouco de imaginação ideológica que lhe faltava. Afirmava que os judeus haviam frustrado a evolução da Europa como entidade política, causando todas as guerras européias desde o ano de 1843, e planejando a ruína da França e da Alemanha, ao incitar uma contra a outra”.

Um ano antes do início da Segunda Guerra, Celine publicara um panfleto (Bagatelle pour un massacre), no qual “embora não incluísse nova interpretação da história européia, já abordava a questão de modo surpreendentemente moderno: evitava as diferenciações entre judeus nativos e estrangeiros, entre judeus bons e maus e, não se preocupando com laboriosas propostas legislativas – característica particular do anti-semitismo francês – ia direto ao assunto e pedia o massacre de todos os judeus”.

A tese de Celine foi prontamente rejeitada pelos políticos de bom senso, segundo Hannah, pois “só um doido poderia apresentar massacre como solução de um problema”, embora a situação tivesse trafegado por outras vertentes: “Como resultado, mesmo os alemães, ao se esforçarem – em vão – em persuadir o povo francês de que o extermínio dos judeus seria uma cura para todos os males sob o sol, tiveram de contar com colaboradores inadequados como Doriot, um seguidor de Mussolini, e Pétain, um velho chauvinista francês sem qualquer compreensão dos problemas modernos”.

Contudo, na Alemanha dos anos 30 do século passado surgiu um doido cercado por uma legião de pervertidos morais, que se julgava predestinado a empreender a extinção do povo judeu. Uma das mais abjetas invenções da maldade humana – os campos de concentração – acabou dando espaço a uma verdadeira indústria da morte em que milhões de inocentes foram vitimados.

Isto para não falar do sentimento de angústia causado pelo terror disseminado pelos agentes do nazismo, que não mediam esforços para atormentar a vida dos não arianos.

Um desses afligidos, pinçado em meio a milhares de outros (ou milhões?) foi o também filósofo Walter Benjamin, quadro brilhante do Instituto de Estudos Sociais, a famosa Escola de Frankfurt, ao lado de pensadores do porte de Adorno, Horkheimer e Marcuse. Refugiado na França para fugir da perseguição imposta aos judeus na Alemanha, Walter viveu em Paris durante alguns anos até que os tentáculos de Hitler subjugassem também aquele país, que até então se passava como “o país símbolo da Europa”.

Em maio de 1940, as tropas alemãs ocuparam a Holanda, Bélgica e Luxemburgo, invadindo também a França, obrigando milhões de franceses a abandonarem Paris em direção ao sul que constituía uma zona livre. Benjamin foi um desses fugitivos e na cidade de Lourdes escreveu a Adorno, em Nova York, pedindo-lhe para interceder junto ao serviço diplomático dos Estados Unidos, com a finalidade de obter-lhe um visto de entrada na América “o mais rapidamente possível”, como relatou Leandro Konder em Walter Benjamin, o marxismo da melancolia (Editora Campus, RJ, 1989).

Na última carta a Adorno, de 2 de agosto de 1940, Benjamin sublinhou o medo de que o tempo disponível para ele e sua irmã Dora, que também fugia da perseguição nazista e da morte certa num campo de concentração, estava se extinguindo.

Benjamin foi para Marselha, onde finalmente recebeu o visto norte-americano, mas “faltava-lhe, entretanto, um documento que, naquelas circunstâncias, era impossível de ser obtido: a permissão para sair da França”, lembrou Leandro. Paris estava sob o domínio de Hitler e o governo francês do marechal Pétain, sediado em Vichy, assumira o compromisso de colaborar com o invasor.

“As autoridades colaboracionistas não se arriscariam a contrariar os alemães, autorizando a saída de um judeu. Por acaso, Benjamin se encontrou em Marselha com Arthur Koestler, que lhe deu metade dos tabletes de morfina que trazia consigo para a eventualidade de precisar matar-se”, acrescentou.

O último esforço seria a travessia dos Pirineus, na fronteira da França com a Espanha, que fez juntamente com outros fugitivos guiados por patriotas que prestavam esse serviço. O destino era a pequena cidade de Port Bou, de onde se chegava a Barcelona e daí a Lisboa, na rota para os Estados Unidos.

O desfecho é lancinante. Quando os recém-chegados foram solicitar a permissão para seguir para Portugal a polícia lhes informou que Madrid – lembremos que a Espanha vivia sob a ditadura Franco – havia suspendido a medida e que todos seriam recambiados à França. Benjamin sabia muito bem o que isto significava e, então, durante a noite ingeriu os tabletes de morfina. Na manhã de 27 de setembro foi achado morto.

Quando ficou sabendo da morte de seu grande amigo, o poeta Bertold Brecht afirmou que “aquela era a primeira perda séria que Hitler tinha conseguido infligir à cultura alemã”. Miríades de outras viriam na esteira da diabólica presunção (ainda viva) da banalidade do mal.

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