6:1221 anos só por hoje

Nessa hora eu ainda estava na nóia. Paranoia de cocaína. Há quatro dias me drogava. Tinha pego 20 gramas com o traficante. Ainda tinha droga comigo. Até a véspera consegui me enganar que trabalhava. Jornal. Repórter da editoria de esportes. Cobria os três clubes de Curitiba. A energia que tinha para conseguir produzir alguma coisa, hoje sei, é a que tenho para me manter vivo. O esforço dentro do atrapalho geral era enorme. Usava a droga da forma injetável. Na véspera de um sábado, não consegui mais escrever. Passei as informações que consegui não sei como, para um colega de redação. Depois tive a coragem de falar para o chefe que tinha recaído. Tentaram me segurar ali para me ajudar. Não conseguiram. Minha necessidade de dar mais um pico era maior. Fui para um hotel, tive convulsões durante a noite, comecei a achar que alguém ia entrar pela porta porque achava que estavam ouvindo eu bater com o cocoruto na cabeceira da cama quando tinha o espasmo de hora em hora. Não parei de me drogar. Me escondia no banheiro para enfiar a agulha na ferida que fiz no braço direito, onde conseguia encontrar o que restava da veia naquela parte do corpo. Depois fui para um outro hotel, mais barato. Ali a nóia continuou, assim como o uso da droga. Não lembro a hora, não era essa, do começo da manhã de um dia em que saí para olhar as plantas, as árvores e as flores à minha disposição no quintal de casa, na rua e nas redondezas. Mas em algum momento quando lá fora os carros passavam na avenida embaixo da janela daquele quarto, senti que não tinha mais saída. Então telefonei para o jornalista Marcio Varella, que trabalhava comigo, estava sóbrio há muitos anos e nunca escondeu essa conquista diária de ninguém. Ele pediu para me afastar da janela. Tinha receio que eu me jogasse daquele terceiro andar. Eu não pensava nisso, mas obedeci. Ele chegou, entreguei a droga que ainda restava. Ele me levou para a clínica, a Quinta do Sol, onde estou até hoje, como voluntário. Foram 45 dias de internamento. Ali, minha alma conseguiu ouvir que é possível. Sim, foi através da palavra, porque só assim, quando ela faz sentido, que se começa a retomar o controle da própria vida. E a palavra só é ouvida quando começamos a perder o medo de nos olhar, de enfrentar o medo, nossos demônios que não são tão demônios. Continuo na clínica. Sou o voluntário mais antigo da minha turma, do meu time que inclui todos os pacientes. Nesse time estão incluídos todos os que sofrem sem saber porquê. Os que estão morrendo nas casas, nas ruas, que são vítimas de preconceito, que são abandonados, que se abandonam porque, como eu, naquele sábado há 21 anos, não conseguem ainda enxergar uma saída. Aprendo sempre mais ouvindo e falando. Aprendo com todos os terapeutas que passaram por minha vida nesse tempo. Lamento a falta de informação a respeito dessa doença que tem controle, jamais cura. Não sei o que pode acontecer comigo amanhã. Sei o que aconteceu antes – mas aconteceu e não posso modificar. Varela, o amigo, uma vez disse que a dependência é como você ter um tubarão dentro do peito. Ele está lá, quietinho, mas se a gente bobear, recair, ele volta a fazer o estrago por dentro. Brinco que atingi a maioridade. Descobri que, ao contrário do que passei muitos e muitos anos, sou feliz, humorista, às vezes mordaz, mas só escrevendo e para quem merece as balas venenosas. A sobriedade me fez ver o quanto a normalidade da vida é maravilhosa, apesar dos problemas. Mas, sem eles, que emoção teria a vida? Sempre tive os meus três filhos, Yuri, Ticiana e Tarsila, mas antes, por motivos óbvios, era distante. Praticamente não os vi nascer e a parte da infância deles tenho dificuldade de lembrar. As fotos me dão certeza de que eles não sofreram como eu imaginava – e aí entra um dos riscos maiores de quem tem a doença: o sentimento de culpa. Há 21 anos eles sabem que sou pai, assim como descobri a importância dos meus, a dona Zefa e o Zé luis – e também fiquei junto do meu irmão, Ricardo Silva. Eu tinha 40 anos quando comecei a retomar o controle da minha vida e descobrir o quanto é importante ter a liberdade de escolher o caminho. Posso recair daqui a pouco. Posso continuar assim, na simples e absurdamente maravilhosa experiência do só por hoje. Sou grato. Sou um milagre, como está escrito num dos livros dos Alcoólicos Anônimos.

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12 ideias sobre “21 anos só por hoje

  1. Esdras

    Vc e um guerreiro Zé continue firme, ajudando que precisa ouvir esse testemunho de vitoria,abraço.

  2. Sergio Silvestre

    O opio do homem é quando ele tem historias reais dele para contar.
    Continue brincando com as palavras ,escrevendo o cotidiano ,isso é um elixir para por para fora o que de ruim aconteceu e para não retroceder para esse passado.

  3. Peter Zero

    Zé, não consigo dimensionar os portais infernais pelos quais passou, mas sei que eles existem, e é possível deles se libertar . Quem nos emerge da escuridão é aquele ser que tinha a chama acesa no passado, nós mesmos. Prossiga e persista na jornada, valerá a pena.

  4. leandro

    Zé Beto, quando te conheci não tinha o mínimo conhecimento de que você tinha estado numa situação dessa. Com o passar do tempo e conversando com outras pessoas soube deste teu martírio que felizmente para você e para nós acabou.
    Você ao abrir a caixa de teu coração mostra uma coragem imensa em confessar algo que alguns nessa sociedade e imbecis não compreendem.
    Você já venceu , só o fato de dizer claramente fatos de um passado não ignorado mas pensado já mostra tua valentia e e tua vitória.
    Aqui neste Blog as vezes a gente se desentende e parte até para uma ignorância verbal e aó ´pe que entra um papo equilibrado e moderador da tu parte e com a razão as vezes gozador mas correto, mostrando que aqui ninguém é o dono de verdade alguma.
    Uma grande abraço Zé Beto

  5. Estatística

    Só posso lhe desejar força e o hoje bem vivido. Parabéns, Zé. Pelas pequenas(?) vitórias de cada dia e pelo exemplo.

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