10:38A persistência da memória

por Yuri Vasconcelos Silva*

A imagem ainda nítida em pensamentos. Quando tinha oito anos, por vezes se prostrava no quintal frontal da casa, mãos no gradil frio, a mirar longe. Depois do portão de sua casa, atravessando a rua feita de poeira vermelha, subindo os barrancos dos campos de mato baixo e, por fim, do outro lado da rodovia municipal. Lá estava um vasto campo, que se elevava em direção ao horizonte no formato de uma corcova suave coberta de grama de pasto. Àquela distância, parecia um tecido de seda verde espraiado ao solo. O garoto focava a construção no ponto mais alto. Era uma casa disposta em diagonal, com dois pavimentos, toda branca como cal, exceto por detalhes esbeltos de bordaduras azul royal que delimitavam as várias janelas venezianas e as grandes portas que davam para o jardim. No piso inferior, sete arcos se sucediam apoiados em colunas que sombreavam a área avarandada. Em dias de sol, com bons ventos, era possível ver o reflexo de luzes dançantes de águas movimentadas projetadas nas paredes da casa. Uma piscina, deduziu o garoto, já que era impossível avistá-la daquela distância.

Pouco se importava para aquela visão quando estava soltando pipa, jogando betes ou apostando corridas de bicicleta com os amigos do bairro. Mas quando acompanhado apenas do tédio, era inevitável conjecturar sobre a paisagem persistente em frente à sua casa. As venezianas, ele notou, estavam sempre fechadas. Poucas vezes viu pessoas aproveitando a suposta piscina. Durante as noites, existia apenas uma janela com luz acessa. Sempre a mesma. Era provável que não houvesse ninguém naquele quarto, e a luz era mantida acessa para a eternidade, como um pequeno farol no meio daquela grande propriedade. Ao lado da casa, numa área em que parecia ser suficiente para um bom campeonato de pipas ao céu, existia uma reserva de eucaliptos. Já havia se aventurado com amigos perto do bosque, na surdina, pois os adultos proibiam qualquer um aproximar-se da rodovia. Montados nas bicicletas, o garoto e seus amigos ficavam diante das cercas, olhando para aquela paisagem de troncos lisos e chão seco recoberto de folhas mortas. O garoto e seus amigos recontavam e inventavam estórias sobre a casa, a fazenda e maldições sobre a floresta onde nada crescia além daqueles árvores.

Com o tédio de uma tarde qualquer, teve o impulso de ir conhecer a casa de perto, ver como era a piscina. Pedalando, atravessou a rua de poeira, os campos de mato baixo e a rodovia municipal. Largou a bici recostada num palanque da cerca e atravessou os arames sem atrapalho com os farpos. Seu coração acelerou, ele sentiu um medo saboroso e quis mais. Caminhou em direção ao fundo da floresta para não se expor em campo aberto. Sentiu o cheiro leve e úmido do eucalipto e percebeu, ao contrário da maldição, que muitos cogumelos cresciam pelo solo. Quanto mais profundo naquele jardim de troncos, menos ouvia o mundo de onde veio. Ele avistou uma construção em ruínas num rincão após um longo declive. O sangue esfriou, o estômago contraiu. Excitado com o medo, foi até lá. Era feita com tijolos rudimentares e parecia uma grande mesa de jantar com pedaços faltando. No chão, cogumelos rubros cresciam com tal abundância que pareciam formar um tapete na direção das bocas do que restou da construção. Eram, na verdade, três portas de ferro fundido enferrujadas. Duas delas estavam abertas e era possível ver carvão e madeira misturados no interior. O menino abriu a terceira porta, na expectativa de achar um objeto de raro valor, ou algum segredo mortificante. Seria seu prêmio e sua prova. Quando abriu, a porta gritou alto um gemido de ferrugem. Daquela boca foi vomitado escuridão. Apenas carvão e terra preta. Desapontado e com adrenalina de volta ao nível usual, o garoto insistiu mais um pouco. Revirou o entulho negro com ajuda de um galho. Então um ponto branco reluziu e fez brilhar o olhar do menino. Quando puxou do fundo, o objeto branco era maior e mórbido. Um crânio. O garoto limpou aquilo como podia e saiu correndo com seu prêmio. Quando chegou em casa, sabia que não poderia contar aos adultos. Foi ao fundo da casa e escondeu o crânio, envolto em um pano de cetim verde, dentro de uma densa amoreira. Os espinhos seriam suficientes para afastar qualquer curioso. Que dia memorável, pensoum antes de dormir satisfeito naquela noite.

Décadas depois, o garoto é um senhor e não sabe mais diferenciar as memórias dos sonhos. Mantém, no entanto, a certeza de duas verdades: este dia existe com detalhes em sua cabeça, e o crânio pertencia a um cachorro.

*Yuri Vasconcelos Silva é arquiteto

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