6:47O Brasil está cansado de esperar

por Ivan Schmidt

Três anos depois do encerramento da marcha da Coluna Prestes, que cobriu um trajeto de 25 mil quilômetros pelo interior do Brasil até o exílio na Bolívia, ocorreu a Revolução de 30 liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, grosso modo, com o objetivo de dar um paradeiro à política do “café com leite”, que alternava na presidência da República candidatos paulistas ou mineiros.

Vargas, que se aliara ao governador João Pessoa, da Paraíba, que seria candidato a vice e, contando ainda com a simpatia de políticos mineiros que haviam sido preteridos na composição da chapa situacionista, porque o presidente Washington Luís forçou a indicação do governador paulista Júlio Prestes como candidato à sucessão (a vez era de um mineiro), decidiu que também seria candidato ao posto.

Como se sabe, Júlio Prestes foi o vitorioso e com folga, e tal fato feriu os brios getulistas a ponto de seus seguidores – entre eles Osvaldo Aranha, Lindolfo Collor, Flores da Cunha, Batista Luzardo e o tenente-coronel Góis Monteiro – aventarem a hipótese (que não desagradava o líder) de uma reação armada.

O ânimo dos futuros revolucionários recrudesceu com o assassinato do governador João Pessoa pelo advogado João Dantas numa confeitaria do Recife, em 26 de julho de 1930. A revolução estava em adiantado estado de gestação e para se precaver o governo editou a Lei de Segurança Nacional, logo denominada pelas esquerdas e lideranças da Aliança Liberal (o partido de Vargas) de Lei Monstro. Os aliancistas pregavam abertamente a derrubada do governo, com o aplauso de parcelas expressivas das forças armadas, a chama tenentista da Coluna e do operariado.

Invocada a tradição que remontava a Floriano Peixoto, segundo o historiador Daniel Aarão Reis, sucessivos manifestos da AL proclamavam a necessidade de “um governo surgido realmente do povo em armas”.

No dia 3 de outubro, a revolução foi deflagrada com base numa ampla aliança integrada por Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraíba, o Partido Democrático em São Paulo, além de círculos políticos importantes no Distrito Federal, Estado do Rio, Pernambuco, Bahia e Piauí. A meta era impedir a posse de Júlio Prestes, prevista para o dia 15 de novembro.

Ainda segundo Aarão Reis, na biografia Luís Carlos Prestes, um revolucionário entre dois mundos (Cia. das Letras, SP, 2014), “quase todos os ex-companheiros da Coluna, todos os principais comandantes, menos Prestes, participaram do movimento, e em posições de direção ou chefia”. Entre eles se destacavam Djalma Dutra, Cordeiro de Farias, Juarez Távora, Miguel Costa e João Alberto, figuras de proa do movimento rebelde da década anterior, que amargando a frustração da Coluna Prestes e sem conseguir convencer o Cavaleiro da Esperança a embarcar no barco varguista, abandonaram o chefe no exílio de Buenos Aires mais tarde transferido para Montevidéu.

O único auxiliar direto de Prestes a não participar da revolução foi o tenente Siqueira Campos, morto num acidente de avião que caiu no rio da Prata, quando ele e João Alberto pretendiam desembarcar clandestinamente no Rio Grande do Sul.

De fato não houve a posse do presidente eleito Júlio Prestes e Getúlio se tornou chefe do chamado governo provisório, o germe da ditadura que se prolongaria de 1930 a 1945. Não demorou muito e a revolução começou a deglutir impiedosamente os líderes e apoiadores, incluindo os da Coluna, que só assim deram razão a Prestes por sua premonitória e intransigente recusa de aderir a Getúlio.

Quase todos debandaram e passaram a ser tratados como adversários, eles que eram os revolucionários legítimos, ou seja, os que criam piamente que o movimento armado de 30 daria continuidade aos ideais da Coluna, livrando o Brasil dos latifúndios, da dominação econômica pela alta burguesia e, já naquela época, dotando o país de efetivas políticas para a agricultura, indústria, educação, previdência social, valorização dos trabalhadores do campo e da cidade, a demagogia que se repete há décadas com escassos resultados práticos.

Um desses entusiastas foi o socialista Maurício de Lacerda (pai de Carlos Frederico Werneck de Lacerda), um dos inúmeros políticos que haviam ido à Argentina para convencer Prestes a aderir, anos depois numa conversa com o então ministro da Justiça, Osvaldo Aranha, a meu ver uma espécie de Golberi do Couto e Silva do getulismo, diante da fieira de críticas pesadas sobre os desvios éticos e morais do governo provisório, instado a conter o ímpeto que lhe caracterizava (e depois o filho), retrucou com uma frase memorável: “É que o Brasil está cansado de esperar”.

É a pura verdade, e o desabafo de Maurício é tão válido atualmente como o foi nos idos de 1935, quando Getúlio e seu estado-maior amadureciam o golpe do Estado Novo, desfechado em 1937. Um tal Plano Cohen, fanfarronice atribuída ao capitão do Exército, Olímpio Mourão Filho, prenunciando uma nova revolução comunista e semita a mando do Komintern, foi imediatamente relatada a Getúlio por Góis Monteiro.

Uma das primeiras providências do governo golpista foi suspender as eleições presidenciais marcadas para 1938, já com as candidaturas postas de Armando de Salles Oliveira, Plínio Salgado e pela situação, o paraibano José Américo de Almeida, que havia sido ministro da Viação.

Até o golpe de 64, o Brasil teve como presidentes o marechal Eurico Gaspar Dutra, o próprio Getúlio, Juscelino Kubitschek, Janio Quadros, substituído por Jango Goulart. No geral, entre 1930 e 2015, o país passou 35 anos sob o tacão das ditaduras de Vargas e dos generais presidentes do ciclo militar. Posteriormente vieram José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva (dois mandatos cada) e Dilma Rousseff, reeleita em 2014, governos mais ou menos praticantes da democracia e, na mesma gangorra convencidos de que deveriam colocar todo o potencial da máquina pública a serviço da maioria da população.

Todos os presidentes com exíguas diferenças, no entanto, repetiram o discurso de Getúlio Vargas. Aliás, um deles, FHC, inovou em gênero e número ao declarar-se preparado para acabar com a Era Vargas.

É triste, mas a constatação óbvia é que o Brasil infelizmente perdeu todas as oportunidades que a chamada redemocratização propiciou para que aprendesse com seus próprios erros. Nesse aspecto, a declaração de Maurício de Lacerda é de uma veracidade ímpar.

Nossos sistemas públicos de educação, saúde e segurança continuam sendo de uma incompetência atroz. O território brasileiro está assolado pela dengue e o que mais choca é que essa doença medieval cobre quase todo o Estado de S. Paulo, o mais rico da Federação. Vítimas de crimes violentos morrem anualmente 50 mil jovens entre 16 e 25 anos, uma força humana que deveria ter um destino mais digno e merecido que o cemitério. E todos os anos deixam a escola milhares de analfabetos funcionais que mal sabem escrever o nome, posto que incapazes de realizar as quatro operações.

Fatos e fenômenos de ordem política não devem ser medidos com o mesmo compasso. Entre um e outro, a depender da época e dos costumes, há sensíveis diferenças. Para efeito de comparação, porém, não é ilógico comparar um e outro. Por exemplo, a eleição de Lula para o primeiro mandato na presidência da República (ele que gostava de se comparar a Getúlio), teve amplas possibilidades de efetivamente passar a limpo os ideais da Revolução de 30, até porque o presidente contava com o altíssimo handicap da maioria absoluta dos votos, reunindo por isso as condições básicas para, enfim, realizar a ansiada revolução democrática.

Professor de sociologia na Unicamp, Marcelo Ridenti é um estudioso de temas marxistas e autor de vários livros sobre as origens e efeitos do golpe de 64 sobre a política atual. Num ensaio sobre a reeleição de Lula em 2006, publicado pela edição 9 da revista Margem Esquerda (Boitempo Editorial, SP), argumentou que Lula foi reeleito porque manteve a política econômica do governo anterior “contra a qual lutava quando estava na oposição – e apesar de todas as denúncias de corrupção que pesam sobre o Partido dos Trabalhadores (PT) e seu governo, veiculadas com grande  destaque por jornais, revistas, internet, rádio e especialmente a televisão”.

Obviamente o ensaísta e a sociedade ignoravam por completo que a roubalheira de dinheiros públicos continuou desenfreada dessa vez na Petrobras, embora o governo já estivesse nas mãos de Dilma Rousseff.

A análise do sociólogo é explícita ao reconhecer que, no primeiro mandato, “o governo Lula não correspondeu às expectativas dos setores do PT e das esquerdas em geral, que esperavam dele uma hegemonia alternativa”. Mais que isso, escreveu que “Lula parece ter deixado de lado qualquer projeto socialista, até mesmo socialdemocrata” ao passo que “incorporou a hegemonia burguesa, tão difusa e consolidada que se torna difícil pensar numa alternativa a ela. No governo Lula em particular, a sociedade brasileira em geral, e também no mundo todo de hoje, tende a predominar ‘o senso de realidade experimentada’ que supõe a reprodução eterna da sociabilidade capitalista”.

Nesse ponto, e só nesse, é possível concordar com a bricolagem que Lula tentou fazer com os cacos do regime varguista, que apesar das falaciosas promessas de recolocar o Brasil nos trilhos depois da catástrofe da República Velha, aliou-se à burguesia exploradora que tencionava extirpar, além de perseguir, encarcerar e banir os que ousavam divergir da catilinária do Estado Novo. Lula não prendeu ou torturou os oponentes de seu estilo de governar, é honesto reconhecer, não obstante operadores do petismo tivessem falado em controle social da mídia, julgando que com o amordaçamento dos meios de comunicação – a imprensa golpista – eles estarão desimpedidos para dar sobrevida ao projeto de poder.

Não torturou nem prendeu, mas mandou de volta para Cuba os boxeadores que tentaram permanecer no Brasil após os Jogos Panamericanos, por subserviência a Fidel Castro, assim como impediu a extradição do preso comum italiano Cesare Batistti, sob a farisaica razão da solidariedade às esquerdas.

Misturando trotskistas e conservadores do agronegócio no primeiro time, na área educacional o governo nada fez para mudar o sistema de ensino privatizante e de baixa qualidade, segundo Ridenti, um sistema “que vende ilusões de ascensão social”, apesar dos milhões de jovens de camadas populares não-brancas que chegaram ao ensino de terceiro grau.

“Mais uma vez, o governo buscou agradar a todos com mudanças pontuais, sem mexer nas estruturas, cativando tanto os donos das escolas como os alunos pobres e suas famílias, que, frequentemente, pela primeira vez em gerações, conseguem ter um membro na universidade”, concluiu.

Inserido na economia global, sem alternativas ao neoliberalismo e sem projeto próprio para substituir a política econômica do governo de FHC, o primeiro governo Lula – o critério foi formulado por Ridenti – “optou por dar continuidade a ela, que privilegia o capital financeiro, mas não deixa de articular a seu modo o interesse de todas as classes – tanto que, bem ou mal, a sociedade brasileira vem funcionando há anos com base nessa política econômica que implica, em nome do controle inflacionário, baixas taxas de crescimento econômico, juros altos, valorização cambial, relativa autonomia do Banco Central, alta aplicação de recursos para pagar a dívida externa”.

Voltarei ao tema.

 

 

 

 

 

 

 

 

O Brasil está cansado de esperar

Por Ivan Schmidt

 

Três anos depois do encerramento da marcha da Coluna Prestes, que cobriu um trajeto de 25 mil quilômetros pelo interior do Brasil até o exílio na Bolívia, ocorreu a Revolução de 30 liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, grosso modo, com o objetivo de dar um paradeiro à política do “café com leite”, que alternava na presidência da República candidatos paulistas ou mineiros.

Vargas, que se aliara ao governador João Pessoa, da Paraíba, que seria candidato a vice e, contando ainda com a simpatia de políticos mineiros que haviam sido preteridos na composição da chapa situacionista, porque o presidente Washington Luís forçou a indicação do governador paulista Júlio Prestes como candidato à sucessão (a vez era de um mineiro), decidiu que também seria candidato ao posto.

Como se sabe, Júlio Prestes foi o vitorioso e com folga, e tal fato feriu os brios getulistas a ponto de seus seguidores – entre eles Osvaldo Aranha, Lindolfo Collor, Flores da Cunha, Batista Luzardo e o tenente-coronel Góis Monteiro – aventarem a hipótese (que não desagradava o líder) de uma reação armada.

O ânimo dos futuros revolucionários recrudesceu com o assassinato do governador João Pessoa pelo advogado João Dantas numa confeitaria do Recife, em 26 de julho de 1930. A revolução estava em adiantado estado de gestação e para se precaver o governo editou a Lei de Segurança Nacional, logo denominada pelas esquerdas e lideranças da Aliança Liberal (o partido de Vargas) de Lei Monstro. Os aliancistas pregavam abertamente a derrubada do governo, com o aplauso de parcelas expressivas das forças armadas, a chama tenentista da Coluna e do operariado.

Invocada a tradição que remontava a Floriano Peixoto, segundo o historiador Daniel Aarão Reis, sucessivos manifestos da AL proclamavam a necessidade de “um governo surgido realmente do povo em armas”.

No dia 3 de outubro, a revolução foi deflagrada com base numa ampla aliança integrada por Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraíba, o Partido Democrático em São Paulo, além de círculos políticos importantes no Distrito Federal, Estado do Rio, Pernambuco, Bahia e Piauí. A meta era impedir a posse de Júlio Prestes, prevista para o dia 15 de novembro.

Ainda segundo Aarão Reis, na biografia Luís Carlos Prestes, um revolucionário entre dois mundos (Cia. das Letras, SP, 2014), “quase todos os ex-companheiros da Coluna, todos os principais comandantes, menos Prestes, participaram do movimento, e em posições de direção ou chefia”. Entre eles se destacavam Djalma Dutra, Cordeiro de Farias, Juarez Távora, Miguel Costa e João Alberto, figuras de proa do movimento rebelde da década anterior, que amargando a frustração da Coluna Prestes e sem conseguir convencer o Cavaleiro da Esperança a embarcar no barco varguista, abandonaram o chefe no exílio de Buenos Aires mais tarde transferido para Montevidéu.

O único auxiliar direto de Prestes a não participar da revolução foi o tenente Siqueira Campos, morto num acidente de avião que caiu no rio da Prata, quando ele e João Alberto pretendiam desembarcar clandestinamente no Rio Grande do Sul.

De fato não houve a posse do presidente eleito Júlio Prestes e Getúlio se tornou chefe do chamado governo provisório, o germe da ditadura que se prolongaria de 1930 a 1945. Não demorou muito e a revolução começou a deglutir impiedosamente os líderes e apoiadores, incluindo os da Coluna, que só assim deram razão a Prestes por sua premonitória e intransigente recusa de aderir a Getúlio.

Quase todos debandaram e passaram a ser tratados como adversários, eles que eram os revolucionários legítimos, ou seja, os que criam piamente que o movimento armado de 30 daria continuidade aos ideais da Coluna, livrando o Brasil dos latifúndios, da dominação econômica pela alta burguesia e, já naquela época, dotando o país de efetivas políticas para a agricultura, indústria, educação, previdência social, valorização dos trabalhadores do campo e da cidade, a demagogia que se repete há décadas com escassos resultados práticos.

Um desses entusiastas foi o socialista Maurício de Lacerda (pai de Carlos Frederico Werneck de Lacerda), um dos inúmeros políticos que haviam ido à Argentina para convencer Prestes a aderir, anos depois numa conversa com o então ministro da Justiça, Osvaldo Aranha, a meu ver uma espécie de Golberi do Couto e Silva do getulismo, diante da fieira de críticas pesadas sobre os desvios éticos e morais do governo provisório, instado a conter o ímpeto que lhe caracterizava (e depois o filho), retrucou com uma frase memorável: “É que o Brasil está cansado de esperar”.

É a pura verdade, e o desabafo de Maurício é tão válido atualmente como o foi nos idos de 1935, quando Getúlio e seu estado-maior amadureciam o golpe do Estado Novo, desfechado em 1937. Um tal Plano Cohen, fanfarronice atribuída ao capitão do Exército, Olímpio Mourão Filho, prenunciando uma nova revolução comunista e semita a mando do Komintern, foi imediatamente relatada a Getúlio por Góis Monteiro.

Uma das primeiras providências do governo golpista foi suspender as eleições presidenciais marcadas para 1938, já com as candidaturas postas de Armando de Salles Oliveira, Plínio Salgado e pela situação, o paraibano José Américo de Almeida, que havia sido ministro da Viação.

Até o golpe de 64, o Brasil teve como presidentes o marechal Eurico Gaspar Dutra, o próprio Getúlio, Juscelino Kubitschek, Janio Quadros, substituído por Jango Goulart. No geral, entre 1930 e 2015, o país passou 35 anos sob o tacão das ditaduras de Vargas e dos generais presidentes do ciclo militar. Posteriormente vieram José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva (dois mandatos cada) e Dilma Rousseff, reeleita em 2014, governos mais ou menos praticantes da democracia e, na mesma gangorra convencidos de que deveriam colocar todo o potencial da máquina pública a serviço da maioria da população.

Todos os presidentes com exíguas diferenças, no entanto, repetiram o discurso de Getúlio Vargas. Aliás, um deles, FHC, inovou em gênero e número ao declarar-se preparado para acabar com a Era Vargas.

É triste, mas a constatação óbvia é que o Brasil infelizmente perdeu todas as oportunidades que a chamada redemocratização propiciou para que aprendesse com seus próprios erros. Nesse aspecto, a declaração de Maurício de Lacerda é de uma veracidade ímpar.

Nossos sistemas públicos de educação, saúde e segurança continuam sendo de uma incompetência atroz. O território brasileiro está assolado pela dengue e o que mais choca é que essa doença medieval cobre quase todo o Estado de S. Paulo, o mais rico da Federação. Vítimas de crimes violentos morrem anualmente 50 mil jovens entre 16 e 25 anos, uma força humana que deveria ter um destino mais digno e merecido que o cemitério. E todos os anos deixam a escola milhares de analfabetos funcionais que mal sabem escrever o nome, posto que incapazes de realizar as quatro operações.

Fatos e fenômenos de ordem política não devem ser medidos com o mesmo compasso. Entre um e outro, a depender da época e dos costumes, há sensíveis diferenças. Para efeito de comparação, porém, não é ilógico comparar um e outro. Por exemplo, a eleição de Lula para o primeiro mandato na presidência da República (ele que gostava de se comparar a Getúlio), teve amplas possibilidades de efetivamente passar a limpo os ideais da Revolução de 30, até porque o presidente contava com o altíssimo handicap da maioria absoluta dos votos, reunindo por isso as condições básicas para, enfim, realizar a ansiada revolução democrática.

Professor de sociologia na Unicamp, Marcelo Ridenti é um estudioso de temas marxistas e autor de vários livros sobre as origens e efeitos do golpe de 64 sobre a política atual. Num ensaio sobre a reeleição de Lula em 2006, publicado pela edição 9 da revista Margem Esquerda (Boitempo Editorial, SP), argumentou que Lula foi reeleito porque manteve a política econômica do governo anterior “contra a qual lutava quando estava na oposição – e apesar de todas as denúncias de corrupção que pesam sobre o Partido dos Trabalhadores (PT) e seu governo, veiculadas com grande  destaque por jornais, revistas, internet, rádio e especialmente a televisão”.

Obviamente o ensaísta e a sociedade ignoravam por completo que a roubalheira de dinheiros públicos continuou desenfreada dessa vez na Petrobras, embora o governo já estivesse nas mãos de Dilma Rousseff.

A análise do sociólogo é explícita ao reconhecer que, no primeiro mandato, “o governo Lula não correspondeu às expectativas dos setores do PT e das esquerdas em geral, que esperavam dele uma hegemonia alternativa”. Mais que isso, escreveu que “Lula parece ter deixado de lado qualquer projeto socialista, até mesmo socialdemocrata” ao passo que “incorporou a hegemonia burguesa, tão difusa e consolidada que se torna difícil pensar numa alternativa a ela. No governo Lula em particular, a sociedade brasileira em geral, e também no mundo todo de hoje, tende a predominar ‘o senso de realidade experimentada’ que supõe a reprodução eterna da sociabilidade capitalista”.

Nesse ponto, e só nesse, é possível concordar com a bricolagem que Lula tentou fazer com os cacos do regime varguista, que apesar das falaciosas promessas de recolocar o Brasil nos trilhos depois da catástrofe da República Velha, aliou-se à burguesia exploradora que tencionava extirpar, além de perseguir, encarcerar e banir os que ousavam divergir da catilinária do Estado Novo. Lula não prendeu ou torturou os oponentes de seu estilo de governar, é honesto reconhecer, não obstante operadores do petismo tivessem falado em controle social da mídia, julgando que com o amordaçamento dos meios de comunicação – a imprensa golpista – eles estarão desimpedidos para dar sobrevida ao projeto de poder.

Não torturou nem prendeu, mas mandou de volta para Cuba os boxeadores que tentaram permanecer no Brasil após os Jogos Panamericanos, por subserviência a Fidel Castro, assim como impediu a extradição do preso comum italiano Cesare Batistti, sob a farisaica razão da solidariedade às esquerdas.

Misturando trotskistas e conservadores do agronegócio no primeiro time, na área educacional o governo nada fez para mudar o sistema de ensino privatizante e de baixa qualidade, segundo Ridenti, um sistema “que vende ilusões de ascensão social”, apesar dos milhões de jovens de camadas populares não-brancas que chegaram ao ensino de terceiro grau.

“Mais uma vez, o governo buscou agradar a todos com mudanças pontuais, sem mexer nas estruturas, cativando tanto os donos das escolas como os alunos pobres e suas famílias, que, frequentemente, pela primeira vez em gerações, conseguem ter um membro na universidade”, concluiu.

Inserido na economia global, sem alternativas ao neoliberalismo e sem projeto próprio para substituir a política econômica do governo de FHC, o primeiro governo Lula – o critério foi formulado por Ridenti – “optou por dar continuidade a ela, que privilegia o capital financeiro, mas não deixa de articular a seu modo o interesse de todas as classes – tanto que, bem ou mal, a sociedade brasileira vem funcionando há anos com base nessa política econômica que implica, em nome do controle inflacionário, baixas taxas de crescimento econômico, juros altos, valorização cambial, relativa autonomia do Banco Central, alta aplicação de recursos para pagar a dívida externa”.

Voltarei ao tema.

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Uma ideia sobre “O Brasil está cansado de esperar

  1. Indignado

    Texto digno de um Jornalista com J maiúsculo. E com os demais adjetivos e superlativos positivos que ele merece, caso raro no universo do jornalismo CHAPA BRANCA que impera no bananão.
    Parabéns ao blogueiro por sempre que possível, nos brindar com a presença do sr. Schmidt através de seus textos sempre certeiros.

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