15:31A democracia em risco

por Ivan Schmidt

Além de governos medíocres, com raríssimas exceções, as democracias da América Latina têm em comum a violência e a criminalidade, que segundo Vicente Jiménez na edição brasileira do El Pais dessa quarta-feira “constituem os principais fatores de instabilidade por solapar a credibilidade das instituições junto aos cidadãos, os quais em geral se inclinam por políticas de pulso firme e baixa qualidade democrática, que podem desembocar em violações de direitos fundamentais”.

Jiménez comentou as conclusões do Barômetro das Américas 2014, pesquisa realizada pelo Projeto Opinião Pública da América Latina, patrocinado pela Universidade Vanderbilt (EUA).

O relatório da pesquisa que somou 50 mil entrevistas foi divulgado no início da semana em Nova York, com dados apurados em 28 países e uma conclusão alarmante elaborada com base na hipótese da persistência da criminalidade e da violência na América Latina e Caribe.

A conclusão é que tal estado de coisas coloca “a democracia em risco”, especialmente nos países que trilham o caminho da centralização do poder e, nos casos mais extremos “as soluções populistas, ilegais ou violentas, como os grupos paramilitares, as patrulhas populares ou a condescendência com os linchamentos públicos”.

É inegável que os países da América Latina e Caribe, escreveu, experimentaram avanços em suas economias na última década. “O número de pessoas que vivem com menos de US$ 2,5 por dia caiu pela metade, e a classe média cresce”, embora “os desequilíbrios continuem sendo enormes (80 milhões de latino-americanos vivem na pobreza extrema), e mais de 40% acreditam que a economia de seu país piorou no último ano. Certo pessimismo, unido à sensação de insegurança estende-se pelo continente, o que provocou um retrocesso nos indicadores de legitimidade democrática desde 2012”.

A pesquisa também constatou que os cidadãos latino-americanos, ao longo da última década, passaram a se preocupar cada vez mais com a criminalidade. Jiménez diz que um em cada três pesquisados considera que esse é o problema mais importante que seu país enfrenta: “Do total de entrevistados, 17% foram vítimas de algum crime, uma cifra que permanece constante desde 2004, e cerca de 40% admitem ter medo de andar por certas áreas do seu próprio bairro. É um problema urbano”.

Não precisamos sair de nossa aldeia para comprovar que a realidade chocante nos atinge pessoalmente, ante os riscos a que se expõem os moradores de bairros de classe média e classe média alta depois que anoitece. Cercas eletrificadas, vigilantes  privados e cães ferozes são a tônica nesses locais. Na pequena rua de bairro de classe média em que resido, costumo dizer com certo ar de deboche que a população que mais cresceu nos últimos anos foi exatamente a canina.

A América Latina e o Caribe têm a maior taxa de homicídios do mundo: 23 assassinatos a cada 100 mil habitantes em 2012, segundo dados das Nações Unidas. “É mais do que o dobro da taxa da África Subsaariana (11,2 homicídios a cada 100 mil pessoas), a segunda região nesse ranking. Um em cada três homicídios no mundo ocorre na América, e 30% deles estão relacionados à atuação de quadrilhas. A América Central supera a média, com 34 homicídios a cada 100 mil habitantes. Na América do Sul a taxa é de 17”, revelou Jiménez.

Em particular no Brasil, e o número já deve estar superado, são assassinadas 50 mil pessoas/ano, a maioria jovens de 16 a 25 anos, nos finais de semana, sendo assombrosa na estatística desse tipo de crime o percentual referente à ação de quadrilhas ligadas ao tráfico de drogas.

Há uma década a população (60,3%) se preocupava com a economia, e apenas 22,5% citavam a segurança pública como motivo de apreensão. Desde 2004 a situação mudou, aparecendo a economia como a maior preocupação para 35,8%, seguida pela criminalidade para 32,5%. Peru (30,6% dos entrevistados), Equador (27,5%), Argentina (24,4%) e Venezuela (24,4%) são os países onde maior número de pessoas declarou ter sido vítima de algum crime.

O jornalista Vicente Jiménez comenta que o medo na América Latina está em seu ponto mais elevado: “Um total de 40% dos entrevistados admite evitar certas áreas de sua vizinhança, outros 35% têm uma sensação de insegurança nos meios de transporte público, e 37% nas escolas. Nesses dois últimos quesitos a Venezuela está à frente dos demais países. A violência também influencia no desejo de emigrar, que aumentou em 2014 em relação aos anos anteriores”.

Metade dos habitantes da Bolívia, Venezuela, Peru, Haiti e México, na ordem estabelecida pela tabulação dos dados da pesquisa está insatisfeita com os organismos de segurança. O depoimento de um em cada três entrevistados atesta que as polícias locais demoram pelo menos uma hora para atender a uma denúncia de roubo ou, simplesmente não aparecem. Essa é uma triste realidade sobejamente relatada no Brasil.

A pesquisa da Universidade Vanderbilt também mostrou que em 2014 a confiança da população nos tribunais desceu ao ponto mais baixo na última década, com o crescimento da sensação de impunidade. Os países em que tal sensação está mais fortemente arraigada no pensamento coletivo são Venezuela, Brasil, Chile, Bolívia, Peru e México.

A contrapartida desse sentimento de insegurança e instabilidade econômica para 55% dos entrevistados estaria na implantação de políticas duras para determinados crimes, sendo que 29% preferem soluções mais brandas. “São comuns os relatos sobre linchamentos em alguns países como forma de autodefesa, como ocorre no México”, relatou Jiménez. No Brasil, em cidades como o Rio de Janeiro, onde os índices de criminalidade são alarmantes, não são raros os linchamentos ou tentativas de fazer justiça com as próprias mãos.

De igual forma, o contato com a corrupção é experiência vivida por um em cada grupo de cinco que acabou pagando algum tipo de propina nos últimos 12 meses. “Cerca de 80% desses cidadãos consideram que a corrupção é comum ou muito comum em seus governos”, registrou o correspondente do diário espanhol em Nova York.

A Operação Lava Jato que se aproxima de um desfecho retumbante na avaliação do povo (nunca tantos graúdos foram presos e acusados de corrupção e terão de prestar contas à Justiça), é como se fosse uma ficha datiloscópica contendo as impressões digitais dos “corromprendedores”, segundo o feliz neologismo criado por Eugênio Bucci no artigo dessa quinta-feira no Estadão.

Para que se perceba toda a extensão do ataque predatório aos cofres da Petrobras, do qual participaram em comandita políticos, empresários e funcionários da estatal (uma das maiores do mundo em petróleo), é suficiente lembrar que das dez mais importantes empresas brasileiras de engenharia, nove estão envolvidas na trama diabólica desvendada pela Polícia e Justiça Federal do Paraná. O Ministério Público Federal, é o que a sociedade anseia, se declara pronto a oferecer denúncia contra essa malta de criminosos de colarinho branco.

Os procuradores brasileiros que estiveram essa semana em Lausanne (Suíça), obtiveram da Justiça do referido país a ordem de repatriação de US$ 26 milhões (R$ 65 milhões) que o engenheiro Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras, tinha depositado, ou outros fizeram em seu nome, nos bancos de lá. A importância supera todo o volume de dinheiro de corrupção de brasileiros na Suíça, repatriado até hoje. É espantoso, mas isso é apenas a ponta do iceberg.

Apesar do quadro preocupante, “o Barômetro mostra apoio indiscutível ao sistema democrático como forma de governo”, resumiu Jiménez, “mas esse sentimento também sofreu uma queda a seus níveis mais baixos em dez anos. Na sondagem de 2012, esse critério atingia 71 pontos sobre 100. Nesse ano, caiu para 69 sobre 100. As Forças Armadas e a Igreja Católica são as instituições com mais apoio na região. Os que menos recebem apoio são os parlamentos e, principalmente, os partidos políticos”. Na mosca.

Compartilhe

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.