6:32Pugno, ergo sum!

por Célio Heitor Guimarães

O desabafo que fiz na semana passada neste puxadinho entupiu a minha caixa postal virtual. Além dos comentários registrados aqui no blog, dezenas de mensagens chegaram ao meu endereço eletrônico, disparadas desde Porto Alegre, passando por São Francisco do Sul, no norte catarinense, até chegar ao norte do Paraná. O Grupo dos 15 – universo de leitores desta coluna, como se sabe – exige a continuidade do escriba e de seus escritos.

Eu poderia supor tratar-se de um complô mascarado de apoio, arquitetado por desafetos do colunista com o propósito de prolongar o seu sofrimento em meio às letrinhas e/ou fazê-lo sucumbir de vez diante do desencanto, da desesperança e do desconsolo. Mas não tenho esse direito. As manifestações partiram de amigos e amigo, segundo Milton, é “coisa para se guardar no lado esquerdo do peito”. Rubem Alves tinha opinião semelhante ao afirmar que “diante de um amigo, sabemos que não estamos sós. E alegria maior não pode existir”. Por isso, preciso abraçar e agradecer sensibilizado a Wilson, Swissblue, Yuri, Leandro, Manoel Carlos, Teófilo, Filipe, Alceu Leocádio, Dallagassa, Fausto, Rui, Paulo, Mariana, Jiomar Júnior, Humberto, Gilberto, Milton, Zé Tillo, Antônio Dilson, Benê e a todos os demais, conhecidos ou não, ciente de que, como também assentava o saudoso Rubem, “há gestos de amizade que não podem ser rejeitados”.

Das quatro profissões oficiais que tive – radialista, servidor público, advogado e jornalista – só restou, de certo modo, a quarta, por obra e arte do nosso Zé Beto. Das três primeiras, aposentei-me no tempo certo e por vontade própria. Não permiti que se cansassem de mim. Cansei-me antes delas, ainda que guarde boas lembranças, boas lições e algum carinho de todas elas. Da quarta, já reduzida à mera emissão de opinião em um site aberto a todas vertentes do pensamento humano e sustentado democraticamente por um jornalista patrão e um ser humano marcado a ferro pela valentia e coragem, vou me despedindo aos poucos.

Segundo Eclesiastes 3:1-8, “para tudo há uma ocasião certa; há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu: tempo de nascer e tempo de morrer, tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de matar e tempo de curar, tempo de derrubar e tempo de construir; tempo de chorar e tempo de rir, tempo de prantear e tempo de dançar; tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las, tempo de abraçar e tempo de se conter; tempo de procurar e tempo de desistir, tempo de guardar e tempo de jogar fora; tempo de rasgar e tempo de costurar, tempo de calar e tempo de falar; tempo de amar e tempo de odiar, tempo de lutar e tempo de viver em paz”.

No meu caso pessoal, creio que, ultrapassadas todas as etapas anteriores e antes da derradeira, é tempo de viver em paz. Nasci, plantei, colhi; derrubei e construí; chorei e sorri; espalhei pedras e as ajuntei; poucas vezes calei, mas falei muito; amei, não sei se cheguei a odiar, mas tenho certeza de que lutei.

Na interpretação do texto bíblico atribuído ao Rei Salomão, os especialistas acham que, para ensinar os caminhos que levam à realização e à felicidade, o autor desmonta as ilusões que um determinado sistema de sociedade apresenta como ideal (riqueza, poder, ciência, prazeres, status social, trabalho para enriquecer, etc.) e coloca uma pergunta fundamental: “Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol?”.

Não me atrevo a responder. Mas acho que talvez seja a própria vida, o aprendizado que ela oferece, a opção de caminhos e a consolidação como ser humano. Mas é melhor ficar por aqui, antes que a tese comece a se tornar insustentável.

Quanto à aposentadoria, Rubem Alves daria razão àqueles que contrariam a minha intenção. Ele, aliás, tinha a pior das impressões sobre a aposentadoria. Garantia que o pior da vida é quando o indivíduo se aposenta. E não se referia simplesmente ao momento em que não é mais necessário comparecer ao trabalho. Referia-se àquele momento em que o homem ou a mulher atraca o seu barco e se entrega à tola ilusão de, finalmente, ter paz.

“Paz, precisamente, é o que a alma não deseja” – afirmava Rubem. Tinha argumentos claros: “A alma deseja o perigo, o desconhecido. A alma é uma águia que ama as alturas, as montanhas geladas, o mar desconhecido, os abismos”. E arrematava: “A alma é guerreira: Pugno, ergo sum – Luto, logo existo!”

Para Rubem, aposentado perde a capacidade de sonhar. E sem sonho não há vida. Os que sonham não envelhecem. Pode ser até que morram. Mas morrerão em pleno voo.

Pois então vamos indo, enquanto sonhos ainda existirem – se não referentes à própria pessoa, àqueles que a sucedem e se encontram em plena marcha.

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2 ideias sobre “Pugno, ergo sum!

  1. Ivan Schmidt

    Célio Heitor Guimarães é um desses velhos (me desculpe a liberdade) baobás, que na imensidão solitária da planície, resiste impávido aos ataques da mediocridade burra que assola este pedaço de mundo…
    É uma dádiva ler, a cada semana, seu escrito ponderado, sincero e, acima de tudo, idealista. Admira-me seu domínio intelectual da nobre arte dos quadrinhos, vez ou outra conosco repartida nas pensatas semanais.
    Mas, o que mais me impressiona é seu respeito ao legado espiritual do filósofo Rubem Alves, um dos maiores pensadores do País, a quem procura perpetuar como fiel discípulo.
    Célio, continue na pugna!

  2. Jose maria correia

    Maravilhoso e filosófico texto ,pleno de sabedoria e vivência , obrigado ao estimado autor e nosso patrono Zé Beto.

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