6:48Barriga cheia e poder se completam

por Ivan Schmidt

Vou transcrever abaixo constatações do escritor Elias Canetti (Prêmio Nobel de Literatura), pinçadas de Massa e poder (Editora Universidade de Brasília/Melhoramentos, DF/SP, 1983), livro publicado originalmente na Alemanha em 1960, resultado de 35 anos de pesquisa sistemática sobre o comportamento psicológico de sociedades primitivas, inclusive, que releio cada vez mais intensamente, sobretudo nesses tempos em que o hábito ancestral do mais forte devorar os mais fracos parece subjugar completamente a consciência humana.

Tudo o que se come é objeto de poder. O esfomeado sente um vazio dentro de si. O mal-estar que é provocado por este vazio interior pode ser superado pela ingestão de alimentos. Quanto mais saciado ele está, melhor se sente. Pesado e cheio de satisfação fica deitado aquele que mais pode devorar: o comedor máximo.

Existem grupos humanos que vêem num tal comedor máximo o seu chefe, o seu cacique. O apetite sempre saciado desta pessoa parece-lhes uma garantia de que nunca padecerão de fome por muito tempo. Eles depositam confiança na sua barriga cheia, como se ela tivesse sido enchida também para todos os demais. A relação existente entre digestão e poder se manifesta aqui com extrema clareza.

Em outras formas de domínio, o respeito pelas dimensões físicas do comedor máximo passa para segundo plano. Já não é necessário que ele seja um barril mais grosso que os demais. Mas ele come e bebe com as pessoas que ele escolhe ao seu redor e tudo o que ele lhes serve pertence a ele.

O homem moderno gosta de comer em restaurantes, em mesas separadas, em seus pequenos grupos, pelo que em seguida paga a conta. Uma vez que todas as demais pessoas no local fazem exatamente a mesma coisa, durante a refeição gosta-se de imaginar que os demais têm o que comer. Mesmo as naturezas mais sensíveis nem sequer necessitam desta ilusão durante muito tempo; uma vez saciado, pode-se tropeçar sem problemas nos que estão com fome.

A situação concreta, na qual o herói se encontra depois de um período superado, é a do sobrevivente. O inimigo queria a sua vida, da mesma forma que ele queria a vida do inimigo. Com este objetivo declarado e irredutível eles se enfrentaram. O inimigo sucumbiu. Ao herói, no entanto, nada aconteceu durante o combate. Totalmente tomado pelo monstruoso fato de sua sobrevivência, ele se lança no combate seguinte. Como nada pôde afetá-lo, nada poderá afetá-lo. De vitória em vitória, de inimigo morto em inimigo morto, ele se sente cada vez mais seguro: sua invulnerabilidade aumenta, transforma-se numa armadura cada vez mais perfeita.

Poder-se-ia definir como paranóica a atitude do chefe que se mantém afastado do perigo por todos os meios possíveis. Em vez de provocá-lo e de enfrentá-lo, em vez de correr o risco de um destino talvez desfavorável numa luta, ele próprio procura afastar o perigo com astúcia e previsão. Irá criar um espaço livre em torno de si, um espaço que possa ser controlado, e analisará todo e qualquer sinal de perigo que se aproxime de qualquer lado, porque a consciência de que está envolvido com muitos que poderiam atacá-lo de uma só vez mantém vivo dentro dele o medo de ser cercado.

O perigo está espalhado por todos os lados, não apenas diante dele. O perigo é até mesmo maior às suas costas, onde ele não o poderá perceber de maneira suficientemente rápida. Por este motivo ele volve os olhos para todos os lados e nem mesmo o ruído mais imperceptível pode deixar de ser notado, pois poderia ser sinal de alguma intenção inimiga e hostil.

A ordem é mais antiga do que a fala, caso contrário os cães não a poderiam entender. O adestramento nos animais baseia-se justamente em que eles, sem conhecer a fala, aprendem a compreender o que se espera deles. Por meio de ordens breves e muito claras, que em princípio não diferem das que são dadas aos homens, lhes é comunicada a vontade do domador. Eles obedecem a esta vontade, da mesma forma como acatam as proibições. Tem-se, portanto, todo o direito de buscar raízes mais antigas da ordem; pelo menos está mais do que claro que alguma forma de ordem existe também fora da sociedade humana.

É próprio da ordem não admitir réplica. Ela não deve ser explicada, discutida ou colocada em dúvida. É clara e concisa, já que deve ser entendida imediatamente. Um atraso na recepção prejudica sua força. Em cada repetição que não for seguida de execução, a ordem perde um pouco de sua vida; após algum tempo ficará esgotada ou impotente, prostrada no solo; e nestas circunstâncias é melhor não tentar reavivá-la. Porque a ação que a ordem provoca está ligada ao seu instante.

Para a ordem é importante que ela venha de fora. Sozinho, ninguém teria tido tal ideia. Ela pertence aos elementos da vida que são impostos; ninguém os desenvolve dentro de si mesmo. Mesmo quando aparecem repentinamente homens solitários com uma massa monstruosa de ordens tentando fundar uma nova fé, renovando uma fé antiga, a aparência de uma carga alheia, imposta, é estritamente mantida. Estas pessoas jamais falarão em seu próprio nome. O que eles exigem dos outros lhes foi ordenado; e, por mais que mintam em algumas coisas, neste ponto sempre são sinceros: acreditam ter sido enviados.

A massa, em estado de medo, quer permanecer junta. No auge do seu perigo ela se sente protegida apenas quando sente a proximidade dos outros. Ela é massa principalmente pela direção comum da fuga. Um animal que escapa e que se locomove numa direção própria está mais exposto do que os demais. Além disso, ele sente o perigo com maior intensidade porque está só: seu medo é muito maior. A direção comum dos animais que fogem poderia ser chamada sua “convicção”; o que os mantém unidos os empurra para a frente com maior vigor. Eles não sentem pânico enquanto não estejam abandonados, enquanto cada animal ao lado faça a mesma coisa e esteja realizando exatamente os mesmos movimentos. Esta fuga em massa, pelo movimento paralelo das patas, dos pescoços e das cabeças, assemelha-se ao que, entre os seres humanos, eu chamaria de massa palpitante ou rítmica.

O soldado em serviço apenas cumpre ordens. É possível que tenha vontade de fazer isto ou aquilo, mas como é soldado isso não conta. Ele não pode encontrar-se diante de encruzilhadas; e mesmo que se encontrasse não seria ele quem iria decidir qual dos caminhos tomar. Ele faz o que todos os demais soldados fazem com ele; e faz o que lhe é ordenado.

Deve realçar-se apenas uma coisa: a inconfundível semelhança externa que existe entre o soldado em serviço e o esquizofrênico.

O esquizofrênico, no seu estado de extrema sugestionabilidade, comporta-se como membro de uma massa. Ele é igualmente impressionável, cede de igual maneira a todo e qualquer estímulo externo.

Sabe-se que os homens que atuam sob ordens são capazes dos atos mais atrozes. Quando a fonte da ordem é sepultada e eles são obrigados a voltar os olhos para seus atos, eles próprios não se reconhecem. Dizem: isso eu não fiz. E nem sempre têm consciência de que estão mentindo. Quando se vêem acusados por testemunhas e começam a vacilar, mesmo assim continuam afirmando: eu não sou assim, eu jamais poderia ter feito isso.

Procuram os vestígios do ato dentro de si e não conseguem encontrá-los. Causa surpresa ver que eles conseguiram ficar tão intactos. A vida que levam mais tarde realmente é outra e de maneira alguma está manchada pelo ato. Eles não se sentem culpados e de nada se arrependem. O ato simplesmente não penetrou neles.

Muitos que os conhecem no cotidiano estariam dispostos a jurar que eles estão sendo acusados injustamente.

Elias Canetti (1905-1994) nasceu num povoado da Bulgária numa família de judeus sefarditas. Escrevendo em alemão, viveu muitos anos em Viena e mais tarde migrou para os Estados Unidos. Seus principais livros editados no Brasil são Auto de fé, A consciência das palavras, A língua absolvida, Luz em meu ouvido, O jogo dos olhos e Massa e poder. O escritor ganhou o Nobel de Literatura em 1981.

 

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