7:15A bailarina

Theo_S_VB_07_julho_14

Desenho de Theo Szczepanski

por Rogério Pereira 

A casa verte ansiedade. O dia entra pela janela, quando a vejo estendida no sofá. Tão cedo, digo-lhe com carinho. Tenho ensaio da apresentação. E nada mais fala, com a mamadeira grudada nos lábios e os olhos, num desenho colorido a correr na televisão. É longilínea, magricela e teimosa. Três características que confirmam a descendência. Os cabelos longos rendem um coque volumoso. Sempre a vejo pulando pela casa feito um cabrito novo, desgovernado. Arrasta tudo que ousa desafiar suas descobertas. Um maremoto a varrer o espaço onde reina com engenhosa sabedoria. Parece-me desajeitada, atabalhoada, meio sem prumo. A delicadeza dos movimentos está aprisionada em alguma parte ainda desconhecida ao meu olhar, muitas vezes, pragmático. Nunca a imaginei nas pontas dos pés, sobre uma caixinha de música a rodopiar o corpo em formação.

Ela entra pela porta lateral do teatro, amparada pela mãe. Presa à cabeça, a toca com a cruz vermelha indica a profissão: veterinária. Mas poderia ser médica ou uma delicada enfermeira rumo ao front para cuidar de soldados agonizantes. Ainda há tempo para escolhas. Nos pés as sapatilhas tomam caminhos insondáveis. Sonham ganhar o mundo, as luzes no centro do palco, o estrelato. Eu finjo tranquilidade. Ela esbanja uma deliciosa ansiedade infantil. Desejo-lhe sorte. Ela sorri. Durante segundos, admiro o deslizar do corpo de quatro anos. Flutua sobre um pasto ancestral, uma terra que não conhecera.

Quando a sirene anuncia o fim do alarido entre os assentos, acomodo o corpo na escuridão. Ela será a primeira, ao lado de outras amiguinhas. A turma das veterinárias. Por que escolheram tal profissão? A primeira bailarina puxa a fileira de pequenos seres inseguros. Dedicadas abelhas a proteger a colmeia. Lado a lado, elas aguardam o comando. A música, excessivamente alta, transborda pelo teatro. Os gestos, ainda tímidos, ensaiam um balançar no ritmo da professora. A música começa. Cada corpo toma direções distintas. Um pequeno mundaréu de pernilongos a beliscar a lâmpada da praça. Não vejo ninguém. Apenas ela. É a terceira na fila de bailarinas. Agora, o teatro vazio. Não há mais ninguém a nossa volta. No palco, apenas ela. Na plateia, apenas eu. Somos dois na escuridão. Ela dança para mim. A solidão da bailarina é a minha solidão. Balança os braços, joga as pernas em várias direções. Quando a música reduz o ritmo, gira o corpo. Finge um cumprimento ao público. Eu, o seu imenso público. Para meu espanto, tem desenvoltura e graça. Deixara o cabrito aprisionado em casa. Definitivamente, não herdara de mim o atrapalho dos passos, o desajeito dos movimentos. Tem leveza e cadência. As dimensões magricelas a sustentar o orgulho simétrico do ritmo. O mundo não lhe pesa às costas. Carrega-o com destreza. Enfim, o grande momento: na ponta dos pés rodopia, desenha um círculo em torno de si mesma. Ao fim da eternidade daqueles segundos, sorri. No escuro, meu sorriso a encontra.

Outras bailarinas passam pelo palco. No horizonte, o enxame de abelhas. Lá embaixo, próximo ao rio, no imenso campo verde entre o sofá da sala e o quarto atulhado de bonecas, um pequeno cabrito descansa na vastidão da noite estrelada.

___ * Crônica publicada originalmente em novembro de 2010. E reescrita a pedido de uma bailarina que cresceu.

*Publicado no site Vida Breve (www.vidabreve.com)

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