6:56Revivendo o santo ofício

por Ivan Schmidt

 

Coisas do jornalismo contemporâneo. A Coluna do Leitor da Gazetona (como diz o titular desse blog) publicou nessa quarta-feira (19) um pedido de desculpas por ter editado no dia anterior, na página dois, o artigo escrito em parceria por Maria Araújo e Cristina Peviani, identificadas no rodapé como integrantes da organização nacional da Marcha das Famílias com Deus pela Liberdade.

 

O artigo intitulado “Acorda, Brasil! Quem decide é o povo!”, contendo uma série de aleivosias e interpretações que fariam corar até mesmo os mais fanáticos defensores do golpe militar de 1964, tipo “fomos salvos de um golpe que estava prestes a ser dado no governo do presidente João Goulart” e “muitos cidadãos que viviam na época dizem que o Brasil estava às portas do inferno” e, decerto por esse temor “o povo se uniu e foi às ruas solicitar a intervenção constitucional das Forças Armadas no governo federal”, numa efabulação tirada pelas autoras sabe-se lá de que manual político.

 

Para começar, se fosse mesmo necessária a tal “intervenção constitucional” das Forças Armadas, ela deveria ter acabado rigorosamente no prazo estipulado pelo próprio marechal Castelo Branco, o primeiro presidente do período militar, com a convocação e realização das eleições presidenciais que já tinham, diga-se de passagem, dois candidatos declarados ao pleito, a saber, Juscelino Kubistchek e Carlos Lacerda.

 

Ao contrário do que afirmara Castelo em vários discursos, os chamados “gorilas” tanto das Forças Armadas quanto da alta burguesia (banqueiros, industriais e latifundiários), por meio da palavra dos esbirros no arremedo de Congresso dominado pela maioria absoluta da Aliança Renovadora Nacional (Arena), o partido do golpe, lograram “transferir” o poder constituinte para os chefes militares, que não apenas cassaram os direitos dos candidatos e de muitos outros políticos, suspendendo as eleições diretas para a presidência da República pelos próximos vinte anos.

 

Não vejo necessidade de tocar no nauseante assunto da tortura física e psicológica que o sistema adotou para combater os chamados de “subversivos”, mas seria importante solicitar às autoras do malfadado artigo que esclareçam em que personalidades patológicas — Hitler, Mussolini, Stalin ou Pol Pot – os novos donos do poder foram buscar inspiração para transformar o Brasil numa cubata.

 

Alguns parágrafos adiante da abertura, a dupla abandona os rodeios e circunlóquios que entortaram a boca da direita mumificada e apela sem o menor pejo: “Não vemos outra alternativa que não seja uma intervenção militar constitucional”, embora tentem se penitenciar com a inominável calhordice de que “ela (a intervenção) só acontece em casos extremos, quando a desordem toma conta do país”. E num raciocínio atravessado e ambíguo fazem a louvação das Forças Armadas como “instituições nacionais permanentes”, cuja obrigação é “defender a pátria, não o governo”.

 

Muito bem, caras senhoras. Há um remédio muito mais eficaz que a intervenção das Forças Armadas (e os 21 anos da ditadura provam isso à saciedade), ou seja, eleições livres e com sufrágio universal para a escolha do principal mandatário da República, que pode ser afastado, sim, pela norma constitucional do impeachment baseada em inépcia, corrupção e desvios morais, assegurado o amplo direito de defesa e aprovação da maioria.

 

A meu ver, porém, a providência menos traumática e adotada pelas democracias que fazem por merecer o reconhecimento, choca pela simplicidade: no Brasil o presidente é eleito para um mandato de quatro anos, com direito a disputar a reeleição. Não seria mais civilizado do que pregar o golpe, aguardar o dia da eleição e escolher o candidato melhor preparado para exercer a função? Não pensaram nisso?

 

A Gazeta do Povo, que concedeu parte do prestigiado espaço dedicado à opinião na página dois, diante das barbaridades escritas por Araújo e Peviani, não poderia ter agido de outra forma senão, já no dia seguinte, pedir desculpas aos leitores, arrazoando que o respeito ao princípio da liberdade de expressão “não significa que toda e qualquer opinião deva encontrar amparo nos meios de comunicação que primam pela responsabilidade”.

 

Pois a peçonha destilada no artigo num de seus parágrafos mais longos (o quinto) chegou ao ponto do desequilíbrio mental: “Nossas reivindicações principais são: a destituição da presidente Dilma Rousseff e do vice-presidente Michel Temer; a dissolução do Congresso Nacional, seguida de eleições gerais com plebiscito prévio sobre o regime de governo, com escolha entre república presidencialista, república parlamentarista ou restauração da monarquia constitucional parlamentarista; a prisão de todos os conspiradores por corrupção e alta traição, ao servirem voluntariamente a interesses estrangeiros contra o Brasil”.

 

Talvez o ranço nostálgico da monarquia tenha regurgitado no vomitório proposto pelas senhoras que pretendem reviver a marcha das famílias cinco décadas depois, pelo fato de que um dos organizadores da primeira edição em 19 de março de 1964, foi o deputado monarquista Cunha Bueno. Anos depois um de seus filhos foi eleito para a Assembleia Nacional Constituinte, e conseguiu aprovar a opção pela monarquia no plebiscito a ser convocado sobre a forma de governo.

 

A opção foi democraticamente aprovada (o Centrão estava a postos) e da mesma forma democrática rejeitada pela população. É assim que as coisas devem ocorrer, madames.

 

Para citar apenas dois expoentes do ódio devotado aos que pensavam de maneira diferente, não se pode afirmar que o almirante Silvio Heck ou o brigadeiro Penido Burnier, de quem se dizia ter colocado presos políticos a bordo de aviões da FAB para jogá-los na baía da Guanabara, teriam feito discurso tão raivoso quanto às senhoras que de rosário nas mãos pretendem reeditar o santo ofício.

 

Um dado que vale a pena ser lembrado é que a marcha saiu da Praça da República e se dirigiu à Praça da Sé, onde o palanque para os discursos foi montado ao pé da escadaria da principal catedral católica paulistana. Pouco tempo depois o cardeal Paulo Evaristo Arns descia os mesmos degraus, para se abraçar ao povo e clamar contra os crimes da ditadura.

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Uma ideia sobre “Revivendo o santo ofício

  1. Nilson Monteiro

    Ivan,

    parabéns, ótimo artigo! Clareza, conhecimento histórico e raciocínio amplo, democrático. As urnas devem ser o depositário de quem está (e não são poucos) descontente com a situação. Não vejo, porém, como muitos, mal em se organizar tantas quantas marchas se queira pelo país. À direita, à esquerda, ao centro, não há problema desde que não seja eivado do sentimento de irresponsabilidade ou da prática de crimes.

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