8:02Um pouco mais do bom Maria

por Célio Heitor Guimarães

 

Quando Antônio, o bom Maria, de quem lhes falei na semana passada, chegou pela primeira vez ao Rio de Janeiro não era jornalista nem cronista e muito menos compositor. Tinha apenas 19 anos e queria ser speaker, narrador de futebol, o que já andara sendo na Rádio Clube de Pernambuco. O ano era 1940. Assim que desembarcou do Ita Almirante Jaceguai, instalou-se, como outros pernambucanos, no apartamento 1.005 do edifício Souza, na Cinelândia. Na cama ao lado, estava Fernando Lobo, que o chamara ao Rio e que viria a ser um compositor de mão cheia e pai do menino (hoje setentão) Edu de “Arrastão” e “Upa, Neguinho”. Noutra, Abelardo Barbosa, o futuro rei dos auditórios Chacrinha. Também andava por lá um baiano chamado Dorival Caymmi. No apartamento ao lado, vivia o pintor Augusto Rodrigues.

Conta o cronista e escritor Joaquim Ferreira dos Santos que, certo dia, Maria quase matou o futuro animador de auditórios. Chacrinha estava na banheira, semissubmerso e completamente bêbado. Maria, na privada, lia uma revista, com o pé em cima da barriga do colega de quarto. Também estava bêbedo. Tinha 1,80m de altura e pesava 120 quilos. O peso de seu pé fez com que Chacrinha submergisse de vez. Fernando Lobo, repentinamente, abriu a porta do banheiro e deparou-se com Abelardo Barbosa já roxo, esforçando-se para botar a cabeça fora da água. Por muito pouco, um retirante não morre afogado no Rio de Janeiro por culpa de outro retirante.

A penúria era absoluta. Quando havia oportunidade, os esfomeados do 1.005 roubavam o litro de leite de algum vizinho, que, na época, era deixado na porta dos apartamentos. Outras almas caridosas eram as meninas do Dancing Avenida, ali na Av. Rio Branco. De madrugada, elas surrupiavam um café com leite e alguns sanduíches americanos para fazer a alegria de Maria e de seus parceiros cabeças chatas.

Enfim, Antônio Maria arrumou uma colocação na Rádio Ipanema. Deram-lhe a transmissão de um Fla-Flu pelo campeonato carioca:

– Lá vai o Flamengo no ataque. Valido passa para Zizinho. Zizinho tabela com Leônidas. Recebe de volta, dribla um e chuta. Bola no fotógrafo!

O público ouvinte demorou alguns jogos para compreender que o “bola no fotógrafo” do locutor Araújo de Moraes – assim ele fora obrigado a se identificar pela direção da emissora – queria dizer apenas que a bola foi chutada para fora.

Os grandes nomes da narração esportiva, na época, eram Ary Barroso, que tinha inventado a célebre gaitinha de boca durante as transmissões, e Gagliano Neto.

O emprego de Maria na Ipanema durou seis meses. Do apartamentinho do edifício Souza teve de sair às pressas, depois que uma moçoila parecida com Bette Davis, a quem ele e Fernando Lobo serviram álcool misturado com o remédio Anemotrat, como se uísque fosse, pôs-se a gritar da janela, pedindo socorro contra “dois homens que roubaram o meu relógio e estão querendo me matar”.

Aí, Maria e Fernando foram parar no edifício Orânia, na Rua Ronald de Carvalho, em Copacabana. O novo endereço, porém, durou até a noite em que Antônio, bêbado, com Fernando e Augusto Rodrigues, resolveram fazer uma prova de natação dentro da banheira, os três ao mesmo tempo, e a água chegou ao apartamento do síndico. Ainda ocupou outro apartamento, emprestado pelo filho do então governador de Pernambuco. Novamente, Fernando e Maria reuniram, no local, umas “moças independentes” para uma festinha. A animação corria solta quando uma das meninas, após muitas cervejas, resolveu telefonar para o 2° Distrito Policial e dizer que tinha sido raptada. Maria passou o resto da noite na cadeia e só foi solto, no dia seguinte – segundo o já citado Joaquim Ferreira – porque um policial identificou no sotaque do “meliante” um conterrâneo. Aí, o bom Maria entendeu que acabara a sua primeira temporada carioca: naquele mesmo dia, pegou outro Ita e voltou para a terra natal.

Pois foi no Recife de 1941, que Antônio Maria descobriu a vocação de cronista – quase abortada prematuramente. Após várias tentativas frustradas, conseguiu finalmente ser publicado. A crônica descrevia uma mulher que ele vira na Rua Nova e que, face a ela, se colocara “com a humildade de um mendigo diante de um prato de comida”. Conta que a imagem fez muito sucesso entre os amigos, na Rua Fênix. Mas à noite, quando foi levar a segunda crônica no jornal, recebeu um “sabão” do secretário da redação:

– A Norma Shearer, de quem você falou, é esposa de um anunciante nosso, que mandou suspender o anúncio de domingo. Trate de escrever qualquer coisa explicando que a semelhança foi mera coincidência.

Maria cumpriu a determinação. E confessaria, quando completou vinte anos de crônica:

– Segui dali para frente tomando imenso cuidado com qualquer coisa que pudesse desgostar o anunciante. Na mesma crônica de estreia, a revisão me atingira pela primeira vez. Corrigira “mendigo” para “mendingo”. Na do dia seguinte, sobre carnaval, saiu “sempertina”, em vez de “serpentina”. Pensei muito em abandonar o jornalismo. Por dois motivos: o anunciante e a revisão.

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