7:1450 anos nos contemplam (II)

por Ivan Schmidt

 

Os primeiros quatro anos da década de 60 do século passado foram altamente significativos para a história recente do Brasil, a começar com a eleição de Jânio Quadros à presidência da República, a renúncia sete meses depois, a pressão militar para evitar a posse do vice João Goulart, o episódio do parlamentarismo, o retorno ao regime presidencialista, as provocações do sindicalismo dito de esquerda e a reação da direita, a conspiração e, afinal, o golpe de 1º de abril de 1964.

Foi um período de efervescência político-institucional com poucos precedentes, marcado por iniciativas visando transformar radicalmente a fisionomia nacional, mediante o acolhimento ostensivo por parte do governo das teses defendidas pelo movimento sindical, sobretudo após a criação do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), entregue ao superpelego Clodsmit Riani, que ao lado de Dante Pellacani, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), tinha ligação direta com Jango. Fomentou-se igualmente a criação de sindicatos rurais e a disseminação das Ligas Camponesas, concebidas pelo deputado pernambucano Francisco Julião, em quase todo o Nordeste.

O governo, para horror da classe dominante, havia baixado instruções rigorosas sobre a remessa de lucros das empresas estrangeiras para o exterior, ameaçando expropriar empresas como a Hanna, que atuavam na área de extração de minérios e com a reforma agrária (“na lei ou na marra”), cujo projeto foi assinado pelo presidente no famoso comício do dia 13 de março, na Central do Brasil. O projeto foi enviado ao Congresso alguns dias depois e foi a última manifestação desse teor do ainda chefe do Executivo.

Com a restauração do presidencialismo em janeiro de 1963, o governo anunciou o Plano Trienal elaborado pelo ministro do Planejamento, Celso Furtado, mas o mesmo foi recebido com aberto antagonismo pelos adeptos das reformas de base. A visão de Furtado nada tinha a ver com as reais intenções dos inúmeros grupos de esquerda que apoiavam o governo, em maior grau o CGT, PCB e UNE, entre outros. A economia ia mal com a inflação em alta e Jango viu-se compelido a substituir o ministro da Fazenda, San Tiago Dantas, pelo ex-governador paulista Carvalho Pinto, na tentativa de reaver o controle.

Ante a passividade do presidente e o acúmulo de evidências da ação exercida sobre ele por líderes sindicais e partidos de esquerda, os que conspiravam pelo golpe tencionavam jogar a classe média contra o movimento operário. “Batiam na tecla dos supostos efeitos anárquicos e inflacionários das numerosas greves. A indefinição de Jango impacientou os subalternos nacionalistas das Forças Armadas, propensos, por viés profissional, à ideia da solução pelas armas”, escreveu Jacob Gorender em Combate nas trevas (Editora Ática, SP, 2003).

Em setembro de 1963, com a adesão de um grupo de fuzileiros navais, “centenas de sargentos da Aeronáutica e da Marinha, liderados pelo sargento Antonio Prestes de Paula, se sublevaram em Brasília”, lembrou Gorender, acrescentando que “os insurretos prenderam altas autoridades e ocuparam os ministérios da Marinha e Aeronáutica, a Base Aérea, o aeroporto e a central telefônica”. Tropas do Exército sufocaram a rebelião que deixou dois mortos e uma dezena de feridos, resultando também na prisão de cerca de 600 subalternos.

A conspiração tinha ramificações fora da capital federal, tanto que onze sargentos foram posteriormente presos em São Paulo, além do presidente e secretário do Sindicato dos Metalúrgicos, Afonso Delelis e José de Araújo Plácido. “Infantil na concepção política e na execução técnica, a rebelião colocou a frente nacionalista e democrática em situação constrangedora. Correntes, partidos e entidades diversas evitaram críticas abertas, fizeram declarações de solidariedade à reivindicação de elegibilidade dos sargentos e reclamaram anistia aos rebeldes”, concluiu o historiador.

Com o passar do tempo o relacionamento entre Jango e Brizola foi arruinando e o ex-governador gaúcho apelou para a organização dos Grupos de Onze, pretensa iniciativa de tomar o poder pelas armas, ao mesmo tempo em que desfechava campanha pela indicação para o ministério da Fazenda. Segundo Gorender a resposta de Jango foi a substituição de Carvalho Pinto “pelo pífio negocista Ney Galvão”.

Enquanto fazendeiros e empresários urbanos se armavam o então presidente da UDN, deputado federal Bilac Pinto, passou a ecoar denúncias sistemáticas de armamento dos sindicatos de trabalhadores e das Ligas Camponesas, visando “a comunização do país”. Gorender comenta que as denúncias não correspondiam à realidade, “mas seu efeito de contrapropaganda e despistamento foi colossal, sobretudo na classe média e dentro dos quartéis”.

Quando os incidentes de março de 64 estavam acontecendo, a burguesia já era a classe social dominante, dispondo de grandes recursos econômicos, do aparelho de Estado, de equipes de intelectuais orgânicos e de uma rede de instituições para o trabalho ideológico. Gorender, um dos principais quadros do PCB e testemunha da maior parte dos lances que pontuaram a trajetória do partido na época, afirmou que “a pretensão do PCB de hegemonizá-la (a classe média) fundava-se numa ilusão. Sucedeu o contrário: o PCB é que foi hegemonizado”. Na direção do partido considerava-se a possibilidade do golpe de direita, mas a maioria do comitê central “confiava cegamente no muito comentado dispositivo militar do general Assis Brasil, novo chefe da Casa Militar, logo depois escarnecido pela inépcia e leviandade”.

A citação seguinte extraída do livro de Gorender, hoje um clássico da literatura política brasileira, é devastadora: “Essa confiança no Estado burguês ficou expressa nas declarações de Prestes (Luiz Carlos) por ocasião do aniversário do PCB. Em conferência comemorativa no dia 27, no auditório da ABI, afirmou que não havia condições favoráveis  a um golpe reacionário, mas se este viesse,os golpistas teriam as cabeças cortadas. No dia 29, por ocasião da festa que reuniu milhares de pessoas no estádio do Pacaembu, em São Paulo, repetiu a afirmação. Em face de avaliação tão autorizada e otimista, que poderiam fazer os simples militantes, em geral já dominados pela aceitação da liderança janguista?”.

Na ocasião, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, era o mais ferrenho opositor de Jango, assim como fora de Getúlio e Juscelino. Segundo Marina Gusmão de Mendonça no livro O demolidor de presidentes, resultante da tese de doutoramento defendida no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sobre a ação política de Carlos Lacerda (Códex, SP, 2002), “na verdade, o que estava em jogo era, fundamentalmente, a própria sobrevivência do plano e do projeto político” do então governador da Guanabara. O governador sabia disso, acrescenta ela, “e apostava no acirramento de conflitos e temores que pudessem conduzir a uma intervenção militar e, consequentemente à derrubada do governo”.

Mesmo sendo o crítico mais implacável da política e até da conduta íntima de Jango, não foi à toa que seus adversários o apelidaram de “Corvo”, nem no auge do combate pela derrubada do presidente transpareceu algum indício de que Lacerda tenha tomado parte ativa na conspiração que envolvia o empresariado e alguns setores das Forças Armadas. O falecido Ruy Mesquita, um dos donos do jornal O Estado de S. Paulo, num depoimento sobre Lacerda, declarou que o governador somente poucas semanas antes do golpe aquiesceu “em encontrar-se pela primeira vez com os oficiais do II Exército com os quais vínhamos conspirando havia quase dois anos”, relatou Marina.

É sabido que o líder civil da revolução foi o governador de Minas Gerais, José de Magalhães Pinto, dono do Banco Nacional, que também sonhava com a probabilidade de chegar à presidência da República, a mesma aspiração do colega da Guanabara.

No entanto, desde a posse de Goulart em 1961, a oposição lacerdista foi caracterizada pela violência e exacerbação dos temores mais arraigados nas camadas médias e nas  Forças Armadas, explorando com argúcia “o medo de que sofressem um processo de proletarização e de que ocorresse a comunização do país”. Marina diz ainda que Lacerda “não hesitou em se valer de malabarismos verbais e jurídicos que justificassem um golpe de Estado, bem como a demonização do presidente da República e dos comunistas, ao mesmo tempo em que se apresentava como o herói salvador da pátria”.

Pode-se afirmar que enquanto fossilizados líderes da UDN, oficiais superiores das Forças Armadas e grandes empresários conspiravam contra o presidente João Goulart, Lacerda agia como agitador a fim de confundir a atenção do adversário. Aliás, deve-se acrescentar que o temperamento descontrolado “e até mesmo irracional de Carlos Lacerda não inspirava confiança em alguns setores militares. As reservas seriam ainda maiores no seio do Exército, provavelmente em decorrência da certeza de que ele não hesitava em atacar duramente seus aliados para atingir os objetivos a que se havia proposto”.

O clima predominante nos últimos dias de março, que culminou com a deposição de Jango, reviveu “a mesma incontinência de linguagem que ferira Vargas”, opinou Nelson Werneck Sodré em Capitalismo e revolução burguesa no Brasil (Graphia, RJ, 1997). Em sua visão “Jango se distinguia politicamente pela sua aproximação com o movimento sindical. Essa aproximação correspondia, na época, à composição da burguesia com o proletariado. Significava, do lado da burguesia, consolidá-la no poder e estabelecer condições para moldar o Estado à feição de seus interesses”.

Sem perder o vezo ideológico, Sodré frisou que da mesma forma que ocorreu em agosto de 1954, com o suicídio de Vargas, o golpe de dez anos depois e a deposição de Jango ensejou “o estabelecimento de uma ditadura justamente destinada a impedir as reformas de base, destruir as organizações sindicais operárias e liquidar os combatentes nacionalistas e democratas mais ativos. O populismo compôs o refrão e o anticomunismo estabeleceu a música”. E o general Olympio Mourão Filho botou o bloco na rua. Até a próxima semana.

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