13:07Companheiro Karlos

por Mino Carta

 

A última entrevista de Karlos Rischbieter remonta a cinco anos atrás, colhida pelo colega René Ruschel para a Brasileiros. Rischbieter morreu dia 17 passado, sete dias antes de completar 86 anos, e o entrevistador hoje me escreve: “Lembrei de duas histórias. A condição imposta para só liberar empréstimos financeiros à Editora Abril se você, diretor daVeja, fosse demitido. A outra, o pedido de Karlos, para você organizar um encontro com um certo Lula”.

 

Karlos foi ótimo amigo que o destino escalou no nosso caminho em um momento difícil da minha vida de jornalista, encerrado com a minha saída de Veja. Dela não fui demitido, ao contrário do que se lê em Notícias do Planalto, de Mario Sergio Conti, e do que pretendia a ditadura. De fato, me demiti: não queria receber da família Civita um único, escasso tostão. Illo tempore, Karlos dirigia a Caixa Econômica Federal, à qual a Abril recorria para obter um empréstimo de 50 milhões de dólares. Esta parte do entrecho Conti não cita, e ao seu livro me refiro em meuCastelo de Âmbar como “A Voz do Deserto”. Este haveria de ser o título certo para a obra de um sabujo.

 

Karlos foi o perfeito funcionário do Estado, que só a este serve, íntegro e competente. Ficamos muito amigos, e por ele desde logo soube que o ditador Ernesto Geisel me detestava. No começo de 2000, depois da morte de João Baptista Figueiredo, a divulgação de uma fala do último ditador confirmou o ódio de Geisel a meu respeito, a bem da minha honra e de alegres enredos a desenrolar em proveito dos netos.

 

Com Karlos, personagem entre outros do meu último livro, O Brasil, vivi horas diversas, desde as tristes, quando ambos perdemos nossas mulheres, levadas pela mesma doença, até as divertidas, transcorridas à beira de um bom vinho. Karlos foi excelente tradutor de Rilke, refinado aquarelista e espirituoso contador de histórias. Rimos muito quando se lembrou de um sapato voador, delicado scarpin que entrou pela janela do seu quarto de hotel, em Paris, e pousou sobre a cama. Lá estava Karlos como ministro da Fazenda do governo Figueiredo e o sapato vinha do prédio em frente, onde morava Catherine Deneuve. Recebia a visita de Marcello Mastroianni, e o calçado, atirado em meio a uma briga, tinha outro alvo.

 

No ministério de Figueiredo, Karlos foi para formar parelha com Mário Henrique Simonsen no Planejamento. “Agora vocês poderão fazer as coisas como sempre quiseram”, disse a eles Golbery do Couto e Silva, o bruxo do Planalto, que haveria de conservar a chefia da Casa Civil no novo governo. Golbery o surpreendeu, contou Rischbieter a René Ruschel na entrevista de cinco anos atrás, ao convidá-lo a informar-se a respeito do ideário da liderança sindical emergente, o tal de Lula.

 

As coisas não correram como a parelha teria desejado e ao cabo de um percurso conturbado, Karlos, escreve René, preparou um documento intitulado “Abertura Política e Crise Econômica”, em que vaticinava uma política adequada ao projeto de abertura excogitado por Golbery, singular e contraditória personagem nativa, ideólogo do golpe e da sua demolição. Previa o entendimento entre empresários e sindicatos em torno de medidas empenhadas em reduzir a inflação, “preservar uma razoável taxa de desenvolvimento e combater a tutela do Estado na economia”. Letra morta, está claro.

 

Antes de se demitir, janeiro de 1980, Karlos me ligou para que eu mediasse um encontro com Lula em lugar secreto. Minha casa, obviamente, onde um sofá inglês forrado de couro preto adquirido no Lar Escola São Francisco hospedou os interlocutores para uma conversa especial. Lula veio acompanhado por Jacó Bittar, que comandava então o Sindicato dos Petroleiros de Paulínia. Karlos por Armando Vasoni, caro amigo e representante do ministério em São Paulo. Nunca esquecerei aquela noite. No dia seguinte, Lula ligou, disse: “Grande cara, grande idealista sonhador”. Karlos era um romântico tardio, como somente alguns alemães fora de série conseguem ser.

 

P.S.: Quem estiver interessado em conhecer melhor Ernesto Geisel, tem de ler Ernesto Geisel, lançado há alguns anos pela FGV Editora, um livrão de 508 páginas, do gênero que derruba criados-mudos. Trata-se de uma entrevista conduzida por uma equipe do CPDOC, encabeçada por Maria Celina Soares de Araújo, obra-prima da mediocridade brasileira. O general ali condena a si mesmo: aceita a tortura como recurso amiúde necessário, enaltece avanços econômicos que teriam sido alcançados no seu governo, enquanto praticamente ignora a chamada “distensão” gestada por Golbery. Logo após o primeiro choque do petróleo, ele definira o Brasil como “uma ilha de prosperidade”. Quanto aos entrevistadores, provaram não saber engatilhar as perguntas certas. Por tibieza e ignorância, mistura useira.

 

*Editorial da revista CartaCapital

 

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