6:26Gilda

Ilustração: Theo Szczepanski

Ilustração de Theo Szczepanski

 

por Rogério Pereira

 

Tive uma professora chamada Gilda. Eu era criança — menino mirrado, magro, quase insignificante. Debaixo do cedro robusto, nós a esperávamos. Todos os dias bem cedo. Jogávamos futebol afoitos e ansiosos devido ao pouco tempo que nos restava. Bola não tínhamos. Nossa bola era branca com uma tampa azul — um tubo vazio de álcool. Não lembro a marca. O suor brotava fácil nos fiapos de cabelo na nuca, em volta das orelhas, na quentura da virilha. A moto da professora Gilda gritava ao longe. Um grito esganiçado, comprido, doído nos ouvidos infantis. O ganido dos cachorros separados a pedradas ao trepar na esquina à luz do dia. Sem pressa nenhuma, recolhíamos nossas pastas escolares. (No primeiro dia de aula, a mãe lavou um pacote de arroz de cinco quilos, aparou as beiradas, enfiou um caderno, um lápis e uma borracha. E me deu uma ordem: “Chame a mulher na sala de aula de tia”. Ganhei uma tia (a tia Gilda) jovem, viçosa e motoqueira). Atravessávamos a rua de terra e entrávamos na Ângelo Trevisan. De tábuas e pátio de chão batido. Ao fundo, a igreja São Judas Tadeu não dava conta de todos os nossos pecados. Começava mais um dia de aula.

 

A arte de ser pobre requer astúcia. Quando a tampinha que sustenta a tira do dedão no chinelo arrebenta, é hora de enfiar um prego na transversal. Aos poucos, o prego sobe a cada novo remendo. Quando o dedão, sufocado pelo ímpeto do prego, não entra mais na tira do chinelo, apela-se para um barbante. Enquanto isso, o calcanhar mastiga faminto a borracha até escancarar um rombo. A sola do pé descasca no chão de terra. Chega o momento de trocar o estropiado chinelo. Usei quilos de havaianas, compradas no supermercado Kuzma. Chuva ou sol, os dedos ao relento rumo à escola. Depois, vieram o kichute e a conga.

 

A lembrança é um barulho de moto. Um motor ruidoso e pouco potente. Do ronco forte até o despontar da motoneta, vários segundos se passavam. A chegada ficava presa no ar — expectativa e alegria. Gostávamos daquela professora. Não me embaçam o passado um pedaço dos seios, uma fresta da coxa, um debruçar-se sobre a carteira. Do corpo da professora Gilda nada sobrou. Não havia paixão ou a euforia insólita da posse infantil. Nunca tive sonhos eróticos com ela. Mais tarde, outras professoras se ocupariam da minha cama imaginária. Gilda é o ronco de uma motoca que me acompanha vida afora. E uma mão a me estender algo.

 

Atravessávamos o potreiro na manhã molhada pelo sereno. As vacas ruminavam o começo do dia. Vagarosas, não tínhamos medo. Os úberes gordos balançavam enviesados. Andavam com a displicência dos desocupados. Não nos causavam espanto. Vínhamos da roça. Vacas sempre nos acordaram com o mugido roçando a cerca de arame farpado. O excremento preto formava montes pelo caminho. Quando secos, chutávamos contra quem estive mais perto. Quase sempre, o chinelo desgrudava-se dos dedos e percorria o mesmo trajeto da bosta voadora das vacas. Ríamos em direção ao chinelo quieto na grama molhada.

 

 

Um dia, ao fim da aula, a professora me pediu para que ficasse na sala. Algo errado deveria ter feito. Sem rodeios — meu irmão e minha irmã me esperavam no portão da escola —, ela perguntou se queria ganhar um par de tênis. Claro, eu queria. Adeus, havaianas. Meio sem graça, ela disse que havia um problema: “O pé direito tem um furo no dedão”. Exatamente no local utilizado para trocar a marcha da moto. Não tem problema. Ela me entregou a sacola plástica com o tênis branco, usado e furado. Agarrei o pacote e corri em direção aos irmãos.

 

Em casa, mostrei orgulhoso o presente à mãe. Acho que ela não disse nada. Ela nunca dizia nada. Apenas saía pela chácara de flores, preocupada com as samambaias e avencas espetadas no xaxim molenga. Sobreviver era a nossa prioridade. Cada um à sua maneira. Na manhã seguinte, as havaianas ficaram debaixo da cama. Restava-lhes a companhia do pó. Causei inveja nos demais. Nosso bando de penitentes rumo a uma salvação incerta agora tinha um par de tênis. Atravessei com cuidado o potreiro para não sujar o dedão que ficara de fora. Não despontava por inteiro. Apenas parte da unha. Tinha de evitar esgarçar ainda mais o furo. Antes um dedo de fora do que os dez a chutar a merda seca de vacas insones.

 

Ano passado, voltei à Ângelo Trevisan. Falaria sobre leitura aos alunos. A diretora, sem esconder certo orgulho, mostrou-me meu histórico escolar. Lá estava a assinatura da mãe que eu tantas vezes falsificara. Antes de deixar a sala da diretora, pedi para verificar o nome completo de uma das minhas professoras. Descobri um sobrenome comum. Não, a professora Gilda não era do tempo de ninguém ali. Ninguém tinha notícias dela. Ninguém a conhecera. Compreensível. Já se passaram mais de trinta anos. O pátio de chão batido virou concreto. Terminada a conversa com os alunos, a diretora entregou-me uma cópia do histórico escolar.

 

Hoje, Gilda deve ter por volta de sessenta anos. Ou pouco menos. Eu era uma criança magricela de sete, oito anos a caminho da Ângelo Trevisan. Tenho quarenta anos. A distância entre nós encurtou. Vai encurtar ainda mais. Isso não importa. Não sei por onde anda. Não sei nada sobre ela. Tenho vários pares de tênis. Apenas um branco. Nenhum está furado.

 

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