7:16MINHA ESCRITORA

Ilustração de Theo Szczepanski

por Rogério Pereira

 

A boca desistiu da mãe. A língua, sem serventia, é uma lesma inerte, um muçum sem rio. Só o escarro passageiro. A palavra represada fugiu para a ponta dos dedos ásperos. E lá também agoniza. A mãe desaprendeu a falar. A traqueostomia abandonou na sala de casa um gramofone quebrado da marca Mãe. Está voltando a uma infância inexistente, perdida na roça. O grunhido — um cicio pastoso de catarro — não forma palavra. O mundo é silêncio e solidão. Dos berros agudos “venha tomar banho” a apenas um chiado de bomba de chimarrão sugando uma poça vazia.

 

Ao receber o boletim escolar, corria para casa. Orgulhoso e feliz com as notas, entregava à mãe o papel retangular. Ela olhava sem ver. Assinava na linha correspondente e me devolvia. Nenhum comentário. Aquilo não lhe fazia sentido; não lhe dizia nada. Números num pedaço grosso de papel. Aos poucos, desisti. E me tornei um deliquente escolar. A cada bimestre meus dedos de criança desenhavam o nome da mãe. Do Z ao A, uma história de escuridão. Aos poucos, me acostumei a escrever o nome dela. Se hoje eu fosse ela, teria câncer e estaria morrendo.

Estranhei a primeira manhã em que a mãe me estendeu o bilhete. Um quadradinho amassado. R$ 5 de pão. De início, não entendi. É para eu comprar cinco reais de pão? Ela balançou a cabeça. Começava a ser abandonada pela voz. A lesma se tornava mais lenta. O muçum se debatia no açude deserto. Começamos a conversar por pedaços amassados de papel.

Minha filha digladia com as letras. Não entende o significado do mundo na junção do L e o H. Sofre com o lápis na mão delicada. Irrita-se diante da letra cursiva. Percorre vagarosa as frases dos livros de palavras curtas e consoantes gordas. Caminha descalça pela geada até a porta da escola. Ainda não encontra amparo na palavra escrita. Então, grita, esperneia e, por fim, desabafava: Odeio fazer a lição. Aos poucos, a resistência arrefece. Empunha o lápis e desbrava o papel branco. Lentamente, desenha seu nome, da tia preferida, da amiga inseparável. Cava com esforço um mundo que lhe parece quase inacessível. Atravessa a pinguela sobre a sanga e chega ao outro lado.

O estilo da mãe não é dos melhores. Vírgulas e pontos raramente surgem entre as palavras. A letra é legível. Até bonita para uma mulher cujo tempo em sala de aula se resumiu há alguns dias. Na roça a enxada é mais importante do que o lápis. Ela conta (ou contava) que gostaria de ter estudado. Mas a montoeira de irmãos — uma ninhada de onze — na longa família de italianos a tirou do carreiro que levava à escola, distante alguns quilômetros. Era preciso carpir e roçar. Sobreviver numa terra recém-descoberta. Agora, não faz diferença. No caixão, de nada servem ler e escrever. Nem falar. Em breve, o silêncio da mãe será eterno.

Guardo os bilhetes (comprar pão e margarina; quatro cebolas e seis tomates; dinheiro para o gás; o homem da pintura passou aqui; fiz um pão) numa caixa plástica, longe da umidade que nos rodeia na casa em Campo Largo. Dei um jeito de aprisionar as últimas palavras da mãe. Às vezes, ela coloca o dedo no buraco da traqueostomia e tenta me dizer algo. Já não sei se entendo o que fala. Acho que não. Presto mais atenção no arrulho desafinado do pescoço. A boca se mexe e não forma nada. No final, que restará? Um desenho de criança… Corrigido por um louco! O vazio preenche a pequena sala. Nossa conversa é a de um mudo com um cego, amparada por um surdo.

Fui à escola aos sete anos. Aprendi a ler e escrever. Agora, entendo por que a professora Gilda me dizia que era tão importante saber ler. Se não soubesse, seria um cego diante de uma mãe morta.

 

*Publicado no site Vida Breve (www.vidabreve.com)

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