7:04Meu craque

Ilustração de Theo Szczepanski

por Rogério Pereira

 

Aquele menino lá embaixo é meu filho. A cada dia se parece mais comigo. A magreza lhe sustenta o corpo. O cabelo fino escorre pela testa. Dois dedos de cada pé grudados pela falha genética — somos unidos pelos defeitos. Está correndo. Entre os demais, é pequeno, mirrado. Quase insignificante. Tem quatro anos. Já sou um homem grande, anuncia com frequência. Estou aqui em cima e o observo. Todo fim de tarde de sexta-feira, venho ao ginásio da escola. É coberto e confortável. As arquibancadas sempre vazias. Não desejo nada. Venho apenas para vê-lo. Quando chego, ele já está entre os demais. Pertence àquele mundo. É o menor da turma. Corre para todos os lados carregado por uma sincera alegria.

 

(Aquela ali serve. Pegávamos o facão e — sem qualquer remorso ambientalista —, sangrávamos as árvores adequadas às nossas necessidades. Dois troncos deveriam ter forquilha: as traves. O travessão precisava ser liso e bem reto. Os buracos eram cavados com uma enxada banguela no chão de terra seca. Baleia imaginária gania faminta a um canto.)

 

O calção esconde toda a perna. A camisa desce e escorrega até abaixo dos joelhos. Um pequeno Judas à espera da malhação. Enquanto ele não cresce, preciso diminuir o uniforme azul, que ostenta o número 42 às costas. Alguns pais gritam, passam instruções. Desejam filhos craques, gênios prematuros. Sonham com o orgulho de gols que nunca fizeram. Acreditam na possibilidade do grito. Eu apenas observo. Ele sabe que estou aqui. A bola é um animal a ser domado numa savana de cimento. Em disparada, é perseguida por uma horda famélica. Desajeitadas formigas no torrão de açúcar debaixo da mesa da cozinha.

 

(A mãe sabia que estávamos perto de casa. Nem se preocupava. Dividíamos os times e passamos a infância nos estropiados campinhos de terra. Todos largados, meio sem rumo. Queríamos jogar futebol. A bola era de plástico. Passes certeiros de kichute, conga ou descalços. Um time de indigentes. Quando não tinha bola, qualquer embalagem servia: álcool, Qboa, detergente. A bola nem sempre é redonda.)

 

O chute sai fraco. A bola para sem dificuldade nas mãos do goleiro. Ele me olha. Eu sorrio e faço um gesto de aprovação. O chute reto, bem calibrado. Faltou um pouco de força. Aos quatro anos, chutar uma bola é dar a volta ao mundo. Retorna correndo para o meio da quadra. As passadas são rápidas e simétricas. Já sabe correr. O professor posiciona todos os jogadores. A organização dura míseros segundos. Logo, estão todos amontoados em cima da bola. Pés, pernas, mãos e braços disputam uma atrapalhada batalha. Não há vencedores. Quem faz gol sorri. Quem leva também sorri. Para eles, o futebol é tão importante quanto um picolé de uva numa tarde ensolarada de domingo.

 

(Pelé jogava no meu time. O nosso Pelé era gordo; chamava-se Joelson e chutava com a perna esquerda. As crianças não se importam com falsificações.)

 

Acaba a aula. Entro na quadra e o ajudo com a mochila. Ele transpira. O rosto avermelhado. Caminhamos lado a lado em direção à saída do ginásio. Sua cabeça bate na minha cintura. Coloco a mão esquerda em seu ombro direito. Ele está feliz. Olha para cima. Eu estou aqui. Olho para baixo. Ele está ali. Somos dois meninos chutando uma bola de plástico num campinho de terra. Baleia nos segue de perto.

 

*Publicado no site Vida Breve (www.vidabreve.com.br)

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