6:15Um recorte trágico

por Ivan Schmidt

Em 2014 o golpe militar de 1º de abril de 1964 estará completando 50 anos. É um longo período caracterizado por avanços reais no desenvolvimento econômico e social, com a sofisticação de alguns setores industriais, do comércio e do agronegócio e conquistas no campo da educação, muito embora se lamente – entre outras mazelas — a inflação, corrupção, desemprego, doença, analfabetismo e a escalada do crime organizado, hoje em dia, um flagelo que enxovalha a estrutura policial da maioria dos estados, além de contribuir ano a ano para a elevação da iniqüidade do preço cobrado com a morte violenta de milhares de jovens. Na fila das lamentações do período é obrigatória a inclusão dos desastrados governos Sarney e Collor.

É triste admitir, mas segundo a Organização das Nações Unidas o Brasil ainda patina em termos do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), mesmo alardeando ter tirado milhões de pessoas da pobreza, a elas concedendo a cornucópia de R$ 70 do Bolsa Família.

O Brasil ganhou a Copa do Mundo algumas vezes – sei lá quantas – e desenvolveu (mas depois abandonou) a indústria naval, voltando a importar navios e plataformas marítimas. Temos uma fábrica de aviões no interior paulista, brilhante iniciativa pública hoje privatizada, mesmo caminho trilhado pela Companhia Siderúrgica Nacional e Vale do Rio Doce, além das companhias telefônicas hoje sob total domínio de capitais estrangeiros. Em compensação descobriu petróleo nas camadas do pré-sal.

Na falta absoluta de gerência por objetivos da parte do governo, o que a iniciativa privada aparenta fazer tão bem, ao invés de investir na inteligência da gestão capacitada e eficiente, sem forças para resistir o assédio dos dirigentes partidários que exigem a nomeação de seus afilhados, o governo optou pela entrega do patrimônio construído com o sacrifício da população (a carga tributária), a um mercado cada vez mais ávido por dinheiro mesmo sob o autosuficente, mas falacioso argumento de contar com CEO’s anos-luz a frente dos mambembes administradores públicos. Acreditar quem há-de?

Contudo, o período teve ainda um repulsivo recorte de vinte anos marcado pela apropriação do Estado pelo estamento militar, na clássica definição do general Golbery do Couto e Silva, um dos principais formuladores da doutrina da Escola Superior de Guerra, responsável pela nutrição da mentalidade golpista que se materializou na fatídica quartelada da capital das Minas Gerais.

Sob esse prisma é de extrema lucidez o enunciado do historiador Jacob Gorender (Combate nas trevas, Editora Ática, SP, 2003): “A ocupação da chefia do Estado pelo alto comando do Exército, dando sequência a cinco generais-presidentes, adquiriu a aparência de uma dominação estamental. O que explica o extraordinário êxito da reedição em 1975 de Os donos do poder, ambiciosa síntese historiográfica de Raymundo Faoro. Com efeito, talvez em nenhum outro momento, a sociedade brasileira pareceu tão subordinada a um estamento burocrático senhor do Estado. Já hoje se percebe que a militarização do Estado serviu aos interesses da burguesia brasileira. Por sua vez, a burguesia aceitou as exigências corporativas de autopreservação institucional das Forças Armadas. Enquanto tal, a ditadura militar representou uma forma de dominação burguesa, caracterizada pela coerção extremada exercida sobre as classes subalternas”

Nos últimos meses de 1963, apesar das cotidianas manifestações de apoio oriundas basicamente dos partidos de esquerda (PCB, PCdoB e PSB) e das centrais sindicais operantes na época, o então presidente constitucional João Goulart percebia o esgotamento de seu crédito junto às forças conservadoras, “uma vez que se demonstrava incapaz de conter o descalabro financeiro e subjugar as forças de esquerda”, escreveu Gorender.

No final daquele ano Jango decretou o monopólio da importação de petróleo pela Petrobras e em janeiro, assinou a regulamentação da lei de remessa de lucros do capital estrangeiro. Enquanto isso, Luiz Carlos Prestes, o cavaleiro da esperança, defendia a ideia do segundo mandato presidencial de Jango.

Foi nesse clima efervescente que chegou o mês de março e com ele o dia 13, data de um comício gigantesco diante da Central do Brasil, quando Jango e Brizola fizeram seus lances mais arrojados. Brizola queria a reforma da Constituição, inclusive com o fechamento do Congresso se necessário. O presidente foi menos drástico, exibindo como trunfos o decreto de encampação das refinarias particulares e a desapropriação de propriedades rurais acima de 500 hectares, marginais de vias federais numa faixa de dez quilômetros e superiores a 30 hectares à margem de açudes ou obras de irrigação financiadas pelo governo federal.

No dia 19 de março, organizações orientadas pela direita golpista, segundo Gorender, promoveram em São Paulo a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, evidente resposta ao comício do Rio de Janeiro.

A esquerda, Prestes na vanguarda, entregava a Jango a chefia da revolução sem estimar o pior: o presidente “era um estadista burguês já esvaziado do apoio de sua própria classe”, na corretíssima avaliação do historiador, que acrescentou: “No momento de 1964, a burguesia brasileira já era a classe dominante”.

Um dos estopins definitivos do golpe de 1º de abril foi a comemoração (25 de março) do segundo aniversário da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Estado do Rio, com a presença do lendário João Cândido, líder da revolta de chibata em 1910. Outra figura se destacou, o marinheiro de primeira classe José Anselmo dos Santos, logo celebrizado pelos jornais como o Cabo Anselmo.

Gorender revelou que a direção do PCB, da qual fazia parte, considerava a possibilidade de um golpe da direita, mas a maioria do comitê central “confiava cegamente no muito comentado dispositivo militar do general Assis Brasil, novo chefe da Casa Militar, logo depois escarnecido pela inépcia e leviandade”.

Na noite do dia 30 o presidente João Goulart compareceu a uma solenidade na Associação dos Sargentos e Suboficiais da Polícia Militar, no Automóvel Clube do Rio. Na ocasião, proferiu seu último discurso como presidente da República. Foi demasiado para o espírito de corpo castrense. Em Belo Horizonte e Juiz de Fora os generais Olympio Mourão Filho e Luís Carlos Guedes puseram suas tropas em movimento “antecipando-se ao comando do general Castello Branco, que previa o dia 2 de abril para início da operação golpista”. A reação popular ao golpe foi pífia e a convocação de greve geral somente acatada no Rio e em Santos, e em alguns setores ferroviários do Rio, São Paulo, Bahia e Rio Grande do Sul. “Na Guanabara cometeu-se o erro da paralisação completa dos transportes, o que impediu a locomoção dos trabalhadores até o centro da cidade. Somente umas quatro mil pessoas reuniram-se na Cinelândia e manifestaram seu protesto diante do Clube Militar”. O balanço de Gorender foi lacônico: “Fracassaram não só os comunistas, mas também Brizola, Arraes, Julião e os generais nacionalistas. Jango não quis a luta, receoso que a direção política lhe escapasse e se transferisse às correntes de esquerda”. Poucas horas depois viajava para o Rio Grande e, em seguida, para o Uruguai.

O restante dessa história, como escreveu Dostoievski no encerramento do monumental Crime e castigo, fica para outra oportunidade.

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5 ideias sobre “Um recorte trágico

  1. Emerson Paranhos

    Brilhante resumo. Esqueceu apenas de citar a declaraçõa de Prestes que o Comunismo já estava no poder e que só faltava tomar o governo e também as citações obre a evolução da dita REVOLUÇÃO COMUNISTA alinhavada para ser desencadeada. Foi uma briga de foice para ver quem chegava antes, de um lado o pessoal democrata e do outro os seguidores da doutrina do Che de tranformar a América Latina em dezenas de Vietnans. Os comunas perderam, mas hoje se vingam;estão no poder , no governo e controlam a midia, as Univeesidades o ensino público etc. com sua ativa, competente e persuasiva patrulha intelecttual – é a inteligntia citada por Lenin

  2. Emerson Paranhos

    Completando, em uma briga pelo poder em um cenário horrivel de guerra fria, com Vietnan, África e Cuba explodindo os Anti Comunistas chegaram ao poder. Hoje são tratados como bandidos pela citada midia e os verdadeiros defensores de ditaduras posam e se regalam com o poder.
    Contra os citados problemas do capitlaismo(burgeusia, injustiça social, distribuição de renda, educação, eles no poder, não fazem nada. Muito pelo contrário abusam desse poder para se locupletarem com o dinheiro público e continuam acusando seus adversários pelos males de nossa sociedade

  3. Parreiras Rodrigues

    Gostei de tudo do artigo do Ivai, a começar da primeira linha – golpe militar de primeiro de abril. E dos comentários do Paranhos, ídem…

  4. Arnaldo

    Emerson Paranhos, “comunistas controlam a mídia”??
    Que afirmação absolutamente dissociada da realidade!
    A grande mídia (Globo, Veja, Estadão e Folha de SP) são corretamente apelidados de P.I.G. – Partido da Imprensa Golpista…
    lamentável.

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