6:52Incômodo visitante

Ilustração deTheo Szczepanski

por Rogério Pereira

O câncer é um demônio dentro da gente. Não é fácil expulsá-lo. Faz do corpo uma confortável morada. Até transformá-lo em ruínas. E definhar junto com ele. Sente-se em casa. Afasta os móveis, arrasta o sofá, reorganiza a cozinha, deixa a pia atulhada de louça suja. Esparrama-se nas cobertas sem a menor pressa de levantar-se. Aperta a pasta de dente na metade do tubo. Espalha a toalha molhada sobre a cama. Pendura a cueca no trinco da porta do banheiro. Abandona o caldeirão fumegante no meio da sala. O fogo do inferno é difícil de apagar.

A sala é bonita, bem decorada. Um protótipo da traqueia humana destoa dos móveis caros, da iluminação agradável. Diplomas na parede atestam o talento do médico de meia idade. Ele usa jaleco branco. Não gosto de médicos de jaleco branco. Lembram açougueiros imunes aos respingos de sangue animal. É um tumor. A informação chega-me calma, devagar, como se a leveza das palavras aliviasse o peso da morte. Os lábios do médico mexem-se mudos em minha direção. Um filme antigo em preto-e-branco na tarde nublada. A atriz principal ainda não entrara em cena. O tumor é na garganta. É significativo. O que é um tumor significativo? Seria como um caroço de pêssego entalado na garganta da mãe? Ou um caroço de abacate igual àqueles que colocávamos num copo d’água em cima da pia da cozinha para germinar. Nunca discuti este assunto com a mãe. Apesar de ter passado boa parte da vida na roça, ela não gostaria de que seu corpo se transformasse de repente num estéril pomar cultivado pelo demônio.

Na via rápida, vários carros me ultrapassam. Dirijo devagar. O tumor significativo exige que aumente a potência do ar-condicionado. Pedestres e motoristas nem desconfiam de que terei de conviver com um tumor significativo pelos próximos meses. Estamos juntos há mais de dois anos. Quando perguntei ao médico se era câncer, ele apenas acenou a cabeça feito um boi exausto. Ninguém gosta da palavra câncer. A mãe nunca a pronunciou. Em dois anos com o bicho grudado no pescoço — um indesejado colar ordinário — nenhuma vez, nenhuma menção. O vocabulário da mãe é cada vez mais reduzido.

A remodelação da casa se deu aos poucos. No início, nem notamos. A mãe emagreceu, começou a secar, a perder o viço. Nada de muito anormal a uma mulher sempre à beira da esqualidez indisfarçável. A coisa complicou quando resolveram que chegara a hora de expulsar a qualquer custo o incômodo visitante. Durante meses, bombardearam o pescoço da mãe. Uma bomba de Hiroshima a cada sessão. Vários japoneses destroçados. Em pouco tempo, a pele gasta repuxou, derreteu em várias direções. Na distância entre os seios murchos e o queixo, uma terra devastada. Lembrava o plástico que derretíamos na infância para pingar a lava em formigas e aranhas. No entanto, o cheiro de plástico queimado é mais agradável. Que cheiro era expelido dos fornos entupidos de judeus na guerra que nunca acaba?

Um dia, após mais um bombardeio invisível, esqueceram os restos da mãe no corredor do hospital. Ela e o seu visitante numa maca velha e fria. Eu a encontrei por acaso. Resolvi passear pelo Erasto Gaertner. Num hospital para cancerosos vale qualquer coisa para matar tempo e escapar um pouco dos olhos estranhos que nos espreitam diante da agonia constante. A mãe estava com uma espécie de lençol sobre o corpo. Era preciso chegar bem perto para discernir uma mãe sob o pano. Acabou? Ela disse sim com o polegar direito. O câncer ensinou a mãe a falar sim e não com o polegar direito. Saí pelos corredores em busca de ajuda. Uma enfermeira aceitou devolver a mãe ao quarto. Pediu-me para ajudá-la a empurrar a maca de rodinhas. Era como se conduzisse um carrinho vazio de supermercado pelo deserto.

Após todos os bombardeios possíveis, tiveram de cavar um buraco no pescoço da mãe. Esqueceram de sinalizar: cuidado, traqueostomia à frente. A mãe respira por ali. Um nariz no pescoço. Quando entope, ela agoniza. No dia da cirurgia, eu estava no hospital. A mãe poderia morrer durante a escavação. Melhor garantir alguém conhecido para remover o corpo ao cemitério em caso de morte. Deu certo. Cavaram direito o buraco. Tive de recolher e levar para casa os pertences da mãe: uma dentadura, uma calcinha e um rolo de papel higiênico. Mais tarde, voltei ao hospital com a dentadura, um par de chinelos de dedos e uma calcinha limpa. Foi a primeira vez que toquei numa calcinha da mãe. A segunda foi quando ajudei uma médica residente a abaixar as calças da mãe para verificar se o buraco no abdômen — a jejunostomia — não estava apodrecendo. Não gostei muito de ver e tocar a intimidade da mãe.

A gente tem vários buracos. Cada um com uma função bem definida. A mãe ganha da maioria: tem um no pescoço e outro na barriga. Não é nenhuma vantagem. Depois do pescoço, cavaram a barriga. Respira por um; alimenta-se por outro. Bombardeios, buracos, remédios, esquecimentos parece que deram algum resultado. Os médicos garantem que o demônio levantou acampamento. Picou a mula. Foi embora. Nem ele se encoraja a morar numa casa em destroços, à beira do precipício. O encanamento entupiu. A tubulação de ar é precária. A pintura descascou. Os cômodos encolheram. Há goteiras nos cantos. Mofo nas paredes. O telhado está gasto. Uma casa quase vazia, quase abandonada.

Mas o incômodo visitante pode voltar. Nunca se sabe. Quando retornar, estarei aqui, no portão de casa, à sua espera. Temos muito a conversar.

*Publicado no site Vida Breve (www.vidabreve.com)

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