16:53Três pimentões

Ilustração de Theo Szczepanski

de Rogério Pereira

A mãe é um vira-lata mudo atrás de mim. Caminha muito devagar. Não late. Arrasta o corpo de ossos pelos corredores. Para diante das gôndolas e prateleiras. Demora-se para escolher o mais inexpressivo biscoito. Não saía de casa havia muito tempo. Posso ir junto? Claro, mãe. Entramos no carro rumo ao Condor, no centro de Campo Largo. A mãe desconhece a cidade onde vive há dois meses. Percorre apenas a distância entre a cama, o sofá, o banheiro, a cozinha e o portão da pequena casa. Em cinco minutos, chegamos. Atravessamos a rodovia em silêncio. O primeiro passeio na nova cidade. Estamos um pouco cansados de oncologistas, nutricionistas, hospitais. Nada como uma boa visita ao supermercado numa manhã de domingo de sol devastador. Posso ir junto? Claro, mãe. Não imaginava que a companhia tornaria as compras numa procissão lenta, sem qualquer perspectiva de que o milagre fosse alcançado. Não me lembro da última vez que estive com a mãe num supermercado. Prefiro supermercados a hospitais para cancerosos.

Estratégia simples: percorrer todos os corredores. Eu empurro o carrinho e seguro a longa lista de compras. A mãe sempre atrás a passos de guapeca. Aos poucos, as mãos ossudas — ganchos de um pirata inofensivo — começam a encher o carrinho de coisas que não estão na lista. Potes, rodo, balde, fermento, etc. Ela ignora a palavra escrita. Nunca lhe fez muito sentido mesmo. Nada lhe pertence. A mãe só precisa de ar pela traqueostomia e suplemento hipercalórico pela sonda. O resto é supérfluo. Esmaguei a lista e a joguei no fundo do bolso esquerdo. Eu visto chinelo, bermuda e camiseta. A mãe, calça de agasalho, camiseta, sandália e traqueostomia. Se furassem o meu pescoço, ficaria ainda mais parecido com ela.

Quando a mãe puxou a cadeira e sentou-se a minha frente, senti um leve incômodo. Nunca fomos de falar. Ainda mais no café da manhã, quando o dia se escancara em sua incerteza contumaz. Faço sempre igual: uma caneca grande de café com leite, duas fatias de pão integral, lascas de mamão. A mãe olhou-me com ternura. Mulheres com câncer sabem olhar com ternura para os filhos. A sua frente, cinco bananas maduras — a fruta preferida nos tempos em que a boca mastigava algo além de ar e saliva. Será que nunca mais vou comer pela boca? A pergunta sai às migalhas entre os lábios ressecados e o buraco no pescoço. A dicção da mãe é um vinil riscado sob a agulha de uma vitrola controlada por um louco. Claro que vai, mãe. Basta ter paciência. A mentira acomodou-se à mesa, sentou-se entre nós. A mãe agradeceu com um sorriso de mãe. Levantou-se e retornou à sala. As bananas ficaram sobre a toalha à mercê do dia que entrava pela janela.

Estou protegido numa trincheira de batatas e beterrabas. A mãe escolhe pimentões. Resolvemos dividir a colheita na seção de hortifrutigranjeiros — palavra que significa qualquer coisa. Já separei tomate, banana, batata, cenoura e cebola. A mãe segue diante dos pimentões, após embalar duas cabeças grandes de alho. Depois de minuciosa escolha, enfia três pimentões no pacotinho plástico. Uma brincadeira com o filho daltônico? A mãe sabe que sou daltônico? Nunca conversamos sobre isso. Olho para o pacote transparente e vejo três pimentões de cores distintas: verde, vermelho e amarelo. Um confuso semáforo. Existe pimentão azul? Mãe, estes pimentões são de cores diferentes. Ela balança a cabeça concordando. Mas têm o mesmo preço? Ela dá de ombros ossudos. Abandono a trincheira e encaro a plaqueta de preços. O amarelo e o vermelho (está escrito) têm o mesmo preço. O verde é cinco reais mais barato. É necessário um pimentão de cada cor? Ela diz que sim com a cabeça. Diálogos longos devem fortalecer o corpo da mãe. É quase uma especialista em arremesso de pescoço. Separo os pimentões em três pacotes. Levo tudo à balança para calcular o preço

Seguimos nossa diáspora entre marcas, preços e produtos. A lata de leite condensado agora é de papel. E retangular. A mãe olha para uma marca famosa. Uma vaca sorri. Analisa o preço, pesa a lata de papel na palma da mão. Aproxima-a bem dos olhos com óculos. A mãe necessita de um buraco no pescoço para respirar; de outro na barriga para comer. Óculos para enxergar. Quando precisar de cadeira de rodas para se arrastar, a vida se tornará um pouco mais difícil. Deixa o leite condensado famoso na prateleira. Retira outro. Olha o preço com atenção. Decide colocá-lo no carrinho. Noto que a marca escolhida é dez centavos mais barata. A mãe começa a se preocupar com o valor da compra. Acabo de economizar dez centavos.

O carrinho transborda. O rodo se agarra para não despencar. Vamos ao caixa. No meio do caminho, a mãe estanca. Linguiça. Toma o rumo do açougue, ao fundo do supermercado. Vou atrás. Não posso abandonar meu vira-lata ao relento. Na fila, pergunto: de que tipo? A atendente corta o pacote com atenção. Olha pra mãe e despeja um quilo de linguiça na balança.

— Faz tempo que está com a traque?

— O quê?

— A traqueostomia. Faz tempo que ela tem?

— Dois anos.

— E quando vai tirar?

— Não vai tirar nunca. É irreversível.

— …

Após a curiosidade médica, a atendente me entrega o pacote de linguiça. É da marca Frigosantos. Finalmente, vamos ao caixa. Lá fora, o calor é excessivo, vergonhoso. Visto camiseta, bermuda e chinelo. A mãe, camiseta, calça de agasalho, sandália e traqueostomia.

Não gosto de pimentão. De nenhuma cor.

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