8:42Domicio Pedroso

Domicio Pedroso – Fotos de Roberto José da Silva

Há um cantinho iluminado no Jardim Esplanada que, infelizmente, poucos têm o privilégio de adentrar. Fica numa rua sossegada, dessas que fazem a Curitiba metrópole de trânsito caótico não perder a magia, porque basta virar a esquina e entrar. Ali mora um… um… pintor, se é que esta simplificação caiba para definir Domicio Pedroso. Poeta da alma, já o definiram assim. É mais. É menos. É. Para quem nunca o tinha visto, apenas através de alguns quadros, na figura magra de barba branca, o que inunda são os olhos na moldura de sobrancelhas espessas e grandes bolsas. E o olhar é tão sereno que ao atravessar o portão daquela casa que se apresenta simples para quem passa na rua, deixa-se para trás tudo e passa-se a viver o que, vá lá, se poderia chamar de uma rara experiência sensorial. Leyla, a companheira do artista, ajuda na composição, porque energia pura de olhar faiscante. Domicio Pedroso tem 82 anos e aquele cantinho que pode-se chamar de casa é uma de suas obras. Estudante engenharia civil da Universidade Federal do Paraná, abandonou o curso no terceiro ano. Ficou na Escola de Belas Artes, que frequentava ao mesmo tempo, a porta de entrada no caminho a ser trilhado. Da mistura, saíram os traços do seu espaço, uma sequência de surpresas em forma de cômodos. Ali, faz arte dentro da arte, porque bebeu nas fontes dos mestres, que conheceu e deixou logo no primeiro espaço, para ressaltar que não só aprendeu com eles, mas também porque conviveu, porque seu pai era amigo de De Bona, João Turin, Miguel Bakun. E se o progenitor não pintava, revela Leyla, a mãe, sim, e foi aluna de Alfredo Andersen. O andar pausado, cuidadoso, de Domicio, parece ser um alerta para que o coração do visitante não dispare e o dono não tenha pressa em receber toda aquela carga pictorial e emocional. O anfitrião fala pouco e pausadamente. Viveu e vive do exercício da descoberta mágica do dom que desenvolveu com o olhar e a técnica. Morou na França por três anos, viajou pela Europa – e uma Veneza em arcos azuis e uma Paris de uma viela cinza no inverno nos remete ao externo e ao interno de quem está ali naquele corredor apontando para as telas. Há muito espaço verde no maravilhoso labirinto que é a construção da casa. Há sinais de crianças num espaço ao lado do jardim onde uma piscina azul e um varal onde panos de chão pendurados contrastam com as flores azuis de uma trepadeira que tomou conta de uma árvore. Domicio e Leyla são avós e bisavós. Uma das filhas é diretora de dois museus em Curitiba. Obra da vida. Um enorme salão, de pé direito bem alto, é a catedral da casa. Ali estão expostos dezenas de quadros recentes do artista. Favelas? Na década de 50 Domicio Pedroso morou por um ano no Rio de Janeiro. Subiu o morro, porque isso era possível sem o mínimo receio. O morro e os barracos entraram em sua alma de forma, pode-se dizer, definitiva. Começou desenhando o emaranhado de traços formados pelos barracos. Depois pintou. Depois foi depurando tudo, como ele mesmo diz, e chegou a este ponto que agora está falando, com brilho nos olhos, ao apontar uma pequena luminosidade num dos quadros pendurados. Quem olha ali, imagina tudo, da própria luz de um foco pendurado num fio, as vozes das crianças misturadas com o som da televisão, os móveis, cômodos, sentimentos, pensamentos… e há todo o entorno, em que cada pincelada é um mundo a compor aquele mundo que tomou conta da alma do pintor. As cores que tomam conta do espaço variam – e não é assim mesmo no grande caleidoscópio onde todos estamos? É possível se ver tudo concentrado numa ilha, cercado do mar de um azul de ferir os olhos. O artista faz isso: desperta o desconhecido e o encantamento. A casa de Domicio Pedroso tem tudo a ver com uma daquelas onde há ou não a pequena luz a chamar atenção. Há vielas, escadas. Chega-se ao seu cantinho de trabalho assim. Lá no alto, com grandes janelas que dão para uma Curitiba que pode ser vista num quadro que pintou para o aniversário de 300 anos de sua cidade. Bucólica, como o entorno de seu bairro, mas com espigões no horizonte, que ameaçam invadir mais espaços. O artista provavelmente não tem este temor. Porque fez e cuida da sua grande obra, que são a família, os quadros e a casa no cantinho iluminado do Jardim Esplanada.

Compartilhe

15 ideias sobre “Domicio Pedroso

  1. Simon Taylor

    Que beleza começar o domingo com um texto (e fotos) assim, Zé! Melhor ainda é saber da existência do Domicio, que eu já conhecia de quadros, mas não sabia de quem se tratava. Que beleza. Me deu uma vontade louca de conhecer isso tudo pessoalmente. Quem sabe um dia…

  2. josé-maria pizarro

    MINHA admiração pelos tantos dotes que você tem, meu caro xará. O Campana tem razão. Você é um textualista de primeira. Salve e viva o grande Domício Pedroso! Que bom. Saudade!

  3. domicio pedroso

    Prezados Zébeto, Sonia e João. Tivemos grande prazer na visita de vocês . A sua reportagem nos deixou emocionados pelas palavras tâo carinhosas. Agradecemos e continuamos com a casa aberta para vocês. Um abraço de Domicio e Leyla.

  4. Dallwa Lobo

    Zébeto , através da sua página pude rever o querido e valoroso amigo Domício Pedroso de tantos anos de caminhada dentro das Artes Visuais… Parabéns…
    Saudade Domício e Leila

  5. Iris Pedroso e Silva

    Emocionante!! As palavras descreveram com perfeição a realidade!
    Muito feliz em fazer parte dessa história tão ímpar de vida e família maravilhosa!!

  6. Elizabete

    Concordo em gênero, numero e grau.
    Domício é um ser humano fantástico e mora no meu
    coração. Saúde e luz sempre.

  7. Luiz Renato Fecci

    Ótimo texto, lendo puder reviver os ótimos momentos que sempre tenho nesta casa maravilhosa !!!

  8. Cleusa Nalú Tascheck Strecker

    Prezado Zé Beto…
    Parabéns pelo maravilhoso texto! Obrigada por trazer de volta as minhas lembrancas. Eu me vejo em meio a tudo isso, há um bom tempo que remete a tantas saudades! Tive o prazer de conhecer esta família, que durante bons tempos era minha família em Curitiba. Hoje, minha família de coracäo! Durante meus estudos na UFPR, eu conheci a Dani, e através dela seus pais Leyla e Domicio, pessoas amáveis, de um coracäo täo puro e de um caráter irretocável. Tive a honra de fazer a monografia do artista, e de me envolver de corpo e alma em sua história! Brilhante como a pequena luz que brilha nos seus quadros, enebriante como as linhas que traduzem todo o movimento de suas favelas, barcos e casarios. Tenho a honra de ter dois quadros do artista, e de poder fazer parte de um pequeno período de suas vidas, no qual busquei inspiracäo para o meu viver!! Obrigada pelas boas lembrancas, com muito carinho, meu amor a essa família!!!

  9. Bernardo

    Parabéns Zé Beto, pela excelente definição de um grande artista não só em suas obras, como também no seu modo fino e educado de conviver com os outros. Um amigo verdadeiro, que tive a ventura de conviver por muitos anos e que tenho um grande apreço e admiração!

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.