12:27Meu despertador

Ilustração de Theo Szczepanski

de Rogério Pereira

Não preciso mais de despertador. Sempre no mesmo horário o som esganiçado volteia pela escada em caracol e me alcança. É bem cedo. Lá fora, a claridade é apenas parcial. A luz dos postes e a do dia se confundem. O despertar é lento. O barulho chega-me aos poucos, mas ritmado. Consigo prever exatamente o espaço entre um e outro trinado. Das cobertas, acompanho o tiquetaquear agônico e persistente. Agora, está na cozinha. O arrastar de correntes se espalha pelo calabouço. A chaleira bufa sobre o fogão de seis bocas. Em breve, o cheiro de café subirá os degraus de metal e preencherá o vazio do quarto. A casa é pequena. Os sons percorrem todos os cômodos. Ouço a água escorrer na pia do banheiro. A descarga produz um grito seco no começo do dia. Os passos se movem de volta à cozinha. Estão em torno da mesa. A fruteira no centro abriga banana, laranja, maçã e manga. O pacote de pão está sempre na borda direita. A caneca trazida da Espanha é colorida e destoa do restante da casa. A mesa do café da manhã é sempre igual. Começam óbvios os nossos dias.

A colher imita o liquidificador. No copo plástico, o leite se mistura ao pó que é café da manhã, almoço e jantar. Há dois anos, a mãe come sempre a mesma coisa. O sabor tanto faz. A comida líquida entra pela sonda enfiada na barriga. Mistura com paciência e rigor a primeira dieta do dia. Não pode empelotar. O barulho se esfacela aos poucos. Escuto o deslocar de cadeira. Os pés de madeira irritam o piso de cerâmica. Agora, ela está debaixo da escada à espera de que o líquido esbranquiçado e de aspecto doentio escorra pela mangueirinha em direção à flácida carne do abdômen. Quando me liberto das cobertas, o dia já ganhou as ruas de Campo Largo. Desço lentamente a escada espiralada. Não se pode facilitar quando o corpo ainda está se adaptando ao mundo. Meus pés quase roçam o rosto da mãe sentada na cadeira de madeira. Ela tem paciência. Mulheres com câncer precisam de paciência. Digo-lhe bom-dia. Ela levanta a mão direita. Poderia ser um guarda de trânsito. Ou um fantoche de Hitler. Poderíamos inventar um código: mão direita para cima, bom-dia; mão esquerda para o alto, foda-se o mundo. A mão esquerda teria muito trabalho.

Sento-me à mesa. A caneca ganha leite e café. O pão, manteiga e queijo. Mastigo com a lerdeza de quem desconfia de que a vida passa muito de pressa. A mãe fez bolachas caseiras. Têm um aspecto pouco atrativo. Mas estão gostosas. Escolho uma banana e a deixo sobre a mesa. Está madura. Sempre termino o café e a banana fica ali. Intacta. Banana era a fruta preferida da mãe. Hoje, ela não prefere nada. Se dá por satisfeita quando consegue respirar razoavelmente bem. Retiro a xícara, o prato e os talheres. Deixo tudo na pia. Preciso abrir o guarda-roupa e escolher o melhor disfarce para o resto do dia.

Na sala, a mãe está no sofá. Sempre lê a Bíblia pela manhã. Aos poucos, aos pedaços, com muita dificuldade. A Bíblia é a palavra cruzada da mãe. Ela nunca descobrirá a última palavra. E as respostas ao final estão ilegíveis.

Quando desço novamente a escada — já disfarçado para o trabalho —, encontro a mãe retorcida no sofá. Escultura mal acabada de Krajcberg. Do pescoço salta o barulho. Imagino que um passarinho em breve sairá pelo buraco da traqueostomia e cuspirá na minha cara: cuco. A Bíblia faz companhia a seus pés ressecados. O corpo magro cabe com folga no sofá de dois lugares. Os cabelos pintados escondem parte do rosto deformado. O sono parece profundo. Nunca tenho certeza. A televisão segue desligada. O silêncio é quase absoluto. Ouve-se apenas o ronronar desagradável vindo da traqueostomia da mãe. Abro a porta e saio para a rua ensolarada.

Meu despertador agora dorme.

*Publicado no site Vida Breve (www.vidabreve.com)

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