13:16PARA NUNCA ESQUECER

Fluke e Manoel Carlos Karam – Fotos de Katia Kertzman

O Karam deu um tchauzinho bem discreto, como era do seu feitio, e partiu a pé numa noite silenciosa porque não queria que o Fluke sofresse. Não adiantou, claro. Os dois eram um só e ainda tinham juntos a Katia – e isso aliviou um pouco a caminhada do cachorrinho peludo e que tanto ensinamento deu até para os que naquela casa apareciam de tempos em tempo. O Fluke ficou para tomar conta da Kátia, para preencher um pouco o vazio deixado. E toda vez que víamos o bichinho, ali estava o Karam a nos contemplar e a nos ensinar a observar, por exemplo. Uma mudança de casas, vários problemas com seres problemáticos e o Fluke, aos 14 anos, foi para o colo do seu amor, como na foto acima. Nem é bom contar a barbaridade antecipação da partida, como aconteceu com o Manoel, ou seja, antes do tempo. Num caso houve uma doença. No outro, o ódio abjeto em forma de veneno, um componente que corre no sangue de quem fez. O ser humano é inviável e aqueles que tanto têm a ensinar, parece, sempre vão embora antes. Nós, que os conhecemos, os mantemos vivos. Sabemos que continuarão, agora, mais juntos do que nunca. Fica aqui o que a sensibilidade do Karam deixou registado por tudo que aprendeu com o Fluke. Só temos de agrader aos dois

Crônicas de Alhures do Sul

(6 de fevereiro de 2006)

Existe um tema que me persegue.

O tema do personagem que deseja ser famoso por aquilo que deixou de fazer.

Não tenho cem por cento de conhecimento sobre o que se passa pela cabeça do meu personagem.

Acho que ele tem essa idéia porque ser famoso por aquilo que fez dá mais trabalho do que ser famoso por aquilo que não fez.

Mas não tenho certeza.

Não digo que goste do personagem porque ele me permite falar mal de algumas pessoas célebres.

Gosto dele porque ele me parece um personagem quase humano.

O meu cachorro, por exemplo, é conhecido pelas coisas que faz.

Desde regar as plantas do quintal até mascar a rolha da garrafa de vinho.

Mascar aquela ponta da rolha que ficou em contato com o vinho.

Bem, acho que o exemplo não vale.

Porque o meu cachorro é demasiado cachorro.

O meu personagem que deseja ser famoso por aquilo que deixou de fazer é apenas quase humano.

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(27 de março de 2006)

Eu converso com o meu cachorro.

Faço isso com alguma freqüência.

Eu poderia conversar com as plantas.

Tenho um fícus muito simpático em casa.

Já dirigi algumas palavras a ele.

Mas não foi nenhuma conversação.

Apenas um bom-dia.

Um comentário sobre a chuva.

Coisa pouca.

Eu prefiro conversar com o cachorro.

Evidentemente algumas pessoas escolhem conversar sozinhas.

A conversação pode ser mais inteligente.

Não sei, nunca tentei.

Decidi que as minhas conversações seriam com o cachorro.

Ele me ouve.

Do verbo haver.

Tive outro dia uma conversa com o meu cachorro a respeito de conversa com cachorro.

Eu disse pra ele que tinha uma dúvida.

As pessoas confiariam mais ou confiariam menos em mim depois de saber que eu converso com o meu cachorro?

Conclusão da conversa.

As pessoas deveriam perguntar a seus próprios cachorros se devem confiar mais ou confiar menos num sujeito que conversa com o cachorro.

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(12 de março de 2007)

Dar a volta no quarteirão com o cachorro não é uma grande aventura humana.

Os cães conhecem os locais da casa onde há alimentos.

Mas não só de alimentos vivem os cães.

Eles sabem perfeitamente também em que ponto da casa está a coleira.

É comum o cachorro pedir comida, tão comum quanto parar ao lado da coleira sugerindo passeio.

Ou apanhar a coleira ele mesmo e ir aos bípedes informar que é hora de sair.

As árvores em volta do quarteirão crescem mais que as outras, vejo a cada parada do cachorro.

Os postes de luz, eles também muito bem regados, são os mais altos do bairro.

Os cães da vizinhança, esses recebem o meu cachorro nos portões, cheiram-se, o meu cachorro marca o território e segue o caminho.

Chamo os cães dos vizinhos pelo nome, eles acham estranho que um sujeito que não é da casa saiba o nome deles.

Sinto o estranhamento no balançar da cauda.

Ao fim da volta no quarteirão, já em casa, o cachorro permanece por perto até conseguir a aproximação necessária para uma lambida no rosto.

Dar a volta no quarteirão com o cachorro não é uma grande aventura humana, eu disse no começo.

Perceberam que eu estava errado?

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(6 de agosto de 2007)

Eu não sofro de dog walkers elbow.

Esta doença é a dor que sentem no cotovelo aqueles que levam os cães para passear.

Passeio com o meu cachorro conduzindo o meu amigo pela coleira, mas não tenho dores no cotovelo.

Fluke, este é o nome do meu cachorro, nunca faria tal coisa comigo.

O escritor Paulo Sandrini descobriu que o meu cachorro é filósofo.

E que escreveu o livro “Crítica da ração pura”.

O filósofo Roberto Gomes, autor da “Crítica da razão tupiniquim”, aprovou com um sorriso.

E descobriu-se ainda que o cachorro-filósofo é também cachorro-romancista.

Segundo a jornalista Katia K, ele escreveu “Ração e sensibilidade”.

Enfim, tenho mais chances de sofrer dores no cotovelo virando páginas de livros de filosofia e romances do que levando o cachorro para passear.

Dog walkers elbow.

Sofrem dores no cotovelo muitos daqueles que levam cães para passear.

Mas dor-de-cotovelo é outra coisa.

Além de ser outra coisa, escreve-se com hífen.

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2 ideias sobre “PARA NUNCA ESQUECER

  1. denise

    Ler e ver o Karam, hoje, deixou o coração silencioso.
    Tomara que ele esteja inundado de tanta luz.
    Ele e seu cão.

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