7:20Os três porquinhos

Ilustração de Theo Szczepanski

de Rogério Pereira

O lobo mau não derruba a casa de tijolos. Estufa o peito e assopra. A incapacidade pulmonar o leva a deslizar pela chaminé. Encontra um fumegante caldeirão. Grita em desespero pelos ares, enquanto Cícero, Heitor e Prático refestelam-se na alegria da vitória. Pouco antes, as casinhas de palha e de madeira viraram um amontoado de entulhos diante do poderoso sopro. Sempre que meu filho se aproxima, logo após o café da manhã, carrega o livro de escassas páginas. Leio com a imponência de pai indestrutível. Quando o lobo voa aos berros, meu filho corre e abraça o DVD com sua história favorita. Aos três anos, ele começa a construir seu cânone literário e cinematográfico. Quando chegamos a casa — em cujo muro a placa de “vende-se” é um adorno provisório —, tínhamos percorrido alguns quilômetros em relativo silêncio. Meu pai tentando manter certo otimismo. Meu filho ainda se acostumando à sempre provisória presença do avô. E eu com a certeza de que seria a nossa última viagem.

Fartura é um distrito de Vitorino, no sudoeste do Paraná. O nome, acredito, tenha sido obra de algum comediante interiorano. Ali, fartura é apenas uma palavra desprovida de qualquer sentido. Quando casaram, meus pais se amontoaram num casebre de chão batido — a casa de minha avó paterna. Sempre que me lembro dela (minha avó), vejo uma velha tísica escarrando no chão da nossa cozinha. Em seguida, está morta. Nada mais me resta desta mulher que nos relegou lembranças embaçadas. Na Fartura, fomos gerados, ao lado do chiqueiro quase desabitado. O primeiro berço tinha a companhia de galinhas, porcos e percevejos. Depois, chegamos a Pato Branco. Na casa de tijolos, havia muitas pulgas. Impossível dormir. Nossa carne macia perambulava amortecida pelas manchas vermelhas das dentadas noturnas. As pulgas nos expulsaram. Nunca nos preocupamos com o lobo mau. Animais muito mais desprezíveis nos espantavam com facilidade. Da casa de frestas indecentes, lembro-me do frio e do portão cambaio. Não duramos muito tempo naquela cidade. Mas não havia mais volta. A roça ficara para trás. Tínhamos de seguir adiante.

O corretor nos espera diante da casa de tijolos. Acho que é verde com janelas brancas. Mas talvez seja azul. Ou vermelha. Nunca confie num daltônico. Somos um bando de mentirosos. Reinventamos o mundo a nossa maneira. Retiro meu filho da cadeirinha. Meu pai desce do carro com um orgulho sólido. É manhã de sábado. O portão de metal corre fácil. Diante da modesta casa, um simpático gramado. O corretor desfila suas frases feitas, tenta nos encantar. Não sabe que não somos cobras najas na praça de Marrakesh; somos o alimento delas. É simples descrever a nova morada: uma sala pequena, uma cozinha pequena, três quartos pequenos e um átrio pequeno. Enfim, uma casa pequena. Mas imensa para nós. Em cada cômodo, o corretor sorri e destaca o bom acabamento, a excelente localização, o mercado que logo será construído na esquina, a boa vizinhança, a valorização de toda a região, etc. Digo-lhe que já moramos na Fartura, no sudoeste do Paraná. Ele apenas sorri, sem entender. Corretores sorriem o tempo todo.

Em Curitiba, desde a chegada no final da década de 1970, moramos em duas casas de madeira. Uma já desapareceu. O lobo mau a encontrou. A outra está em ruínas e ainda abriga minha mãe. Logo, estará vazia. Há dez anos, eu a abandonei. Casei-me e subi para o apartamento 52A de uma região que abriga os novos ricos. Prefiro a denominação antigo pobre. Na primeira visita ao filho, o pai me trouxe um estranho presente: três interfones. Ele os encontrara na rua. Ainda estavam na caixa. Desconfio de que foram perdidos durante a fuga de algum atrapalhado ladrão. Enfim, recebi o presente com estranheza. Mas meu pai estava feliz em me dar três interfones. Para ele, eu precisaria em breve, pois agora seu filho mora num prédio de oito andares e, para receber seus pais, tem de atender o interfone tocado por um porteiro. Em seguida, o pai passa por duas portas automáticas, aperta um botão para chamar o elevador, outro para chegar ao apartamento do filho. A fartura, às vezes, deixa de ser apenas uma metáfora. E transforma-se em espanto.

Meu filho segura um carrinho vermelho (?) e desbrava a rua da futura casa dos avós. Ele se sente muito à vontade. Para as crianças, a vida sempre parece algo fácil. Nos despedimos do sorridente corretor e entramos no carro. Vamos retornar. A nova casa fica em Campo Largo, ao lado de Curitiba. Será a última residência de meus pais antes do cemitério. Quebro o silêncio com a óbvia pergunta: “Gostou?”. O entusiasmo dele é resumido num detalhe: “Nunca imaginei que moraria numa casa com interfone”. No Natal, acho que vou devolver-lhe um dos interfones. O outro será do meu filho. Se houver alguma lógica nisso tudo, meu pai é casa de palha; eu, a de madeira; e meu filho, a de tijolos. De um jeito ou de outro, todos tombaremos. Cada um a seu tempo. O lobo mau sempre encontra uma maneira de nos descobrir.

Sigo pela BR-277 com o interfone misturando-se às contas que preciso fazer. Na segunda-feira, tenho de ir à Caixa Econômica, ligarei para alguns amigos, preciso desenterrar cem mil reais para dar de entrada, depois financiarei o restante em vinte anos. Se morrer antes disso, meu filho herdará uma dívida. Ser pai é também nunca abandonar a crueldade lógica. Olho a lista de documentos a providenciar. Casebres de chão batido não precisam de financiamento. A fartura nem sempre melhora a nossa vida. Espero que comprar túmulos seja menos burocrático. Logo, precisarei de um para minha mãe.

Deixo meu pai em sua casa de madeira. Eu e meu filho seguimos para nosso apartamento de tijolos. Lá, o livro dos três porquinhos e três interfones nos esperam. Nossa herança será sempre a mesma.

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