7:46LISTA DE MERCADO

Ilustração de Theo Szczepanski

por Rogerio Pereira*

Fui à casa da minha mãe, mas não a encontrei. Ela estava ali, sentada na cama — uma cama esfarrapada deslocada do quarto para um canto da cozinha — a mover os dedos agora finos. Mas não a encontrei. Meus olhos não a avistaram. Antes, pregada na parede do meu confortável apartamento, apreciei com calma a fotografia. É a primeira comunhão dos filhos mais velhos — eu e meu irmão. Estamos seguindo as ordens da mãe. É preciso buscar a salvação. A coisa não é simples. No altar, somos cinco: os dois novos servos de Deus, minha irmã, meu pai e ela, a mulher que já não consigo mais reconhecer. Formamos um conjunto desarmônico, enviesado. Meu irmão esboça um sorriso e segura o certificado assinado pelo padre à altura do peito. Os demais não sorrimos. Eu, para variar, tenho o olhar voltado para cima. Meu pai usa um ridículo par de tênis. Os outros oito pés carregam sapatos. Também ridículos.

Da foto, minha irmã já morreu. A mãe acredita que ela está ao lado de Deus. Eu prefiro não pensar nisso. Quando olho para a fotografia, tenho vontade de recortá-la, tirá-la para sempre do nosso convívio. Deixar o lugar vago para outra possibilidade. Mãe e filha estão nas extremidades. Os três homens — eu e meu irmão sufocados pelo colarinho da camisa branca e o pai com os tênis ridículos — compõem o centro da fotografia. Engraçado: uma das mulheres já não existe. A outra, a mais velha, está com os dias contados. A imagem está encolhendo. Pela lógica, meu pai está na vez. Como não acredito em lógica, fico à espera de quem será o próximo a ser recortado da foto sem sentido.

O pescoço da minha mãe sempre foi comprido. Agora tem um buraco. O corpo esquálido mantinha certo equilíbrio. Tornou-se apenas um amontoado disforme entre a cama e o fogão a gás. Todas as manhãs, ainda acende uma das bocas. Remexe nas panelas. Faz uma comida desnecessária. A sonda grudada na barriga é uma dentadura fora do lugar. Quantos passos ela anda por dia? É possível medir a vida de alguém pela quantidade de passos? Dias desses, perguntei-lhe minhas estranhezas. Ela tentou colocar o dedo na traqueostomia e emitir algum som. Desistiu e apenas balançou a cabeça, cujos cabelos embranqueceram, perderam o corte e lembram um estranho espantalho.

Num instante, tudo se transformou em assombração. Diante do médico, o veredito: é um tumor. Sabre cravado na garganta. A estrutura iria desabar, transformar-se em escombros, em algo desconhecido. A magreza permanente cedeu lugar ao triste esboço cadavérico. Os ossos saltados, a pele tentando resistir à inevitável ruína. Teu rosto é quase um espelho onde brinca o incerto movimento. Nunca notei que envelhecera. Sempre a vi igual, sempre a mesma mulher da fotografia, beirando os 40 anos. Agora, a mudança abrupta, a repentina decadência. O rosto, somente uma lembrança de alguém que já não é mais. Aproximo-me para avaliar o estrago. É um terreno desconhecido, retorcido, calcinado. A face entortou, ganhou dimensões esquisitas. A radioterapia é péssima artista. No máximo, uma artesã de movimentos trêmulos. O contorno está duro, um pedaço de pedra avermelhado. A respiração é lenta, faz barulho. O cheiro não me agrada. Às vezes, sinto nojo, asco, pena. Por que não morre? Por que insistir se você já desistiu? Seria melhor para todos. Somos egoístas também na morte.

— O que é isso?

— A lista do mercado.

Sento-me na cama ao seu lado. Retiro o pedaço de papel amassado de suas mãos. Asucar, pao, mantega. O “s” me incomoda mais do que a falta de acento. O til não me diz nada. O que é um til? O “i” ausente seria apenas um risco espremido entre o “e” o “g”. Detalhes supérfluos. Ovo e bolo estão corretos. Há outras necessidades na lista do mercado. Peço-lhe para que me dite o que falta. Seguro a caneta mordida na ponta e escrevo o que consigo entender da voz esquartejada. Travamos uma das nossas últimas batalhas. O esforço é necessário. Incluo banalidades. Escrevo croissant e patê de fígado de ganso. Tento imitar sua letra. Ainda lembro-me dos tempos em que falsificava a assinatura da mãe no boletim escolar.

Termino a breve lista. Não corrijo os erros ortográficos. Coloco-a no bolso. E saio em direção ao mercado.

* Crônica  publicada no site Vida Breve (http://www.vidabreve.com.br/)

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