7:17Um escritor a serviço do homem

por Ivan Schmidt

A brilhante carpintaria de João Manuel Simões (assim se escrevia sobre diretores de teatro que montavam geniais encenações) acaba de produzir mais uma obra de efeito imediato e fascinante sobre os leitores, mesmo porque ele é um escritor que escreve “por uma irresistível compulsão interior” e, acima de tudo “por uma iniludível consciência de missão”. É o que se percebe sem muito esforço da leitura de Prismas&Perspectivas (Editora e Livraria do Chain, 2012), em que valendo-se de textos esparsos e revisados, como bem esclarece o subtítulo, publicados em vários veículos, diz o que pensa sobre arte e violência, passando por futebol, história e política, entre outros temas.

Autor de 50 livros, perfazendo um longo itinerário de poeta, prosador, ensaísta e filósofo, com sólida formação humanista que lembra intelectuais ilustres como Tristão de Athayde, Octávio de Faria, Wilson Martins e Ernani Reichmann, para citar uns poucos, João Manuel nasceu em Mortágua (Portugal), mas vive em Curitiba desde 1954. Aqui fez sua carreira de advogado e intelectual incansável, fiel ao lema que torna ainda mais significativa a sua obra: “Escrever é preciso”.

O escritor, segundo o molde de Simões, “deverá realizar o resumo discursivo do mundo”, colocando-se “a serviço dos homens, da humanidade”, naquilo que é uma síntese admirável “da criação literária genuína e autêntica”. Não se faz de rogado, porquanto é homem de leituras infindas e, assim, busca exemplos que realçam suas conclusões: Proust, Joyce, Lawrence, Huxley e Kafka, além de Balzac, Zola, Dostoievski, Gorki, Moravia, Faulkner, Graciliano e Jorge Amado. A lista, entretanto, não fica por aí.

E, se escreve visando alcançar o homem – ou aproximar-se dele – nada melhor que definir “essa coisa que pensa”, rebuscando aqui e ali na sabedoria de insignes pensadores um esboço não apenas possível, mas bastante realista: “Assim é que, para Fénelon, o homem não passa de uma fera que se agita, e para Hobbes, repetindo de certo modo Plotino, ele é o lobo do homem. Animal que joga, segundo Lamb, animal que ri, conforme Whitehead, animal religioso, de acordo com Burke, mero fabricante de brinquedos, como pretende Franklin, pêndulo a oscilar perpetuamente entre o prazer e a dor, pela ótica poética de Byron, o homem é certamente tudo isso. Mas é mais do que isso”.

Simões não se esqueceu de acrescentar que esse mesmo homem pode ser Caim e Abel, Nero e Francisco de Assis, Hitler e Mozart, poço anônimo de ignorância e Einstein. Pois é, o homem “descobre a penicilina e a bomba atômica, a arte de salvar vidas e a ciência de matar por atacado. Consegue atingir a face oculta da lua e sabe chafurdar superiormente nos pântanos ecumênicos da iniqüidade, da aberração e do crime”. É proveitoso refletir sobre a instigante elucubração de João Manuel Simões, especialmente numa conjuntura marcada por gestos e atitudes de representantes da espécie humana, bem mais próximos dos habitantes das cavernas paleolíticas que dos conquistadores de astros.

Contudo, Simões não renega utilizar uma medida de justiça para com esse ser contraditório, que à semelhança de “uma seta arremessada do animal para o anjo” e, por “espantoso milagre da sua interioridade congênita […] alberga dentro de si o infinito”.

Passemos a um tema mais ameno e não menos apaixonante, o futebol, do qual a erudição do pensador também se ocupou com rara perspicácia, mesmo que com adequada dose de nostalgia tenha constatado que a nobre arte anda carecendo não apenas de “críticos sutis e argutos como João Saldanha ou Armando Nogueira, mas de filósofos profundos como Kant ou Schopenhauer”. Mais adiante Simões citaria Pelé e Garrincha e somente os dois, atribuindo-lhes a força de “legiões romanas que invadiram a Gália, sob o comando de Júlio César, em priscas eras”.

Quanto à necessidade de filósofos profundos para interpretar o que se anda fazendo (ou deixando de fazer) nas quatro linhas, seria oportuno, mormente em se tratando da seleção brasileira que depois da era Dunga ainda não conseguiu definir um padrão de jogo, enfim, uma personalidade própria.

Sigamos pela trilha aberta por João Manuel Simões até nos depararmos com sua louvação ao livro, “amigo precioso e dedicado” que “canta no silêncio mais profundo e povoa a solidão mais larga”. Repetindo Milton ele acentua que quem destrói um livro mata a própria sombra de Deus gravada na consciência, lembrando o inquietante Fahreinheit 451, de Ray Bradbury, morto na semana passada. Mas para emitir um juízo acertado sobre as toneladas de papel impresso que pululam aí pelas livrarias (felizmente o número delas cresceu no Brasil), Simões tomou emprestada a sábia opinião de Bacon: “Certos livros devem ser lidos, outros, engolidos, e uns poucos mastigados e digeridos”.

Creio ser o suficiente para estimular pessoas exigentes a procurarem logo o livro de João Manuel Simões e se deliciarem com uma leitura aprazível e inteligente.

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