7:16O homem dos mil olhos

por Ivan Schmidt

Em algum momento da história recente de Pindorama as coisas haveriam de chegar ao ponto a que chegaram, com a flagrante exposição da extrema competência demonstrada pelo bicheiro Carlinhos Cachoeira na manipulação de políticos com mandatos no executivo e no legislativo (até agora não apareceu ninguém do judiciário), além de servidores públicos de alto escalão, empresários, arapongas e até jornalistas.

A sociedade contempla com asco o estado de putrefação das relações entre o público e o privado, na verdade, resultado da escolha por uma população cada vez mais descompromissada, de governantes ineptos que legaram ao povo uma profusão de projetos fracassados e, por interesse pessoal ou simples omissão, acabaram transformando a administração pública num terreno propício à propagação da saprofilia.

É o que prova a ampla rede montada pelo bicheiro goiano, que causa inveja e transforma em simples diletante o mais ambicioso candidato a coronel da política brasileira, que, quando muito conseguiu controlar os votos da bancada partidária de seu estado, captar recursos eleitoreiros e nomear afilhados para cargos representativos.

Entretanto, ao que sabemos, nenhum dos caciques de nossa política de campanário jamais conseguiu montar uma estrutura com ramificações em gabinetes de governadores, secretarias de estado, assembléias e também no Congresso Nacional, com legionários fieis e obedientes às determinações do chefe. O exemplo mais chocante foi a descoberta das centenas de conversas telefônicas (gravadas com autorização da justiça) entre o bicheiro e o senador Demóstenes Torres, atualmente sem partido.

Poucas pessoas poderiam imaginar que o senador em foco, uma das mais articuladas figuras da oposição ao governo, sempre pronto a questionar e exigir esclarecimentos de atos governamentais – em nome da ética e da transparência – um dia seria pilhado em situações altamente comprometedoras com Carlinhos Cachoeira. O senador agia como uma espécie de despachante dos interesses do bicheiro no Planalto, acompanhando projetos que em algum momento pudessem atrapalhar os desdobramentos da contravenção e, em algumas instâncias acatando as orientações do capo que dava mostras de entender do riscado. Numa certa gravação, o senador advertia o bicheiro “de que isso também te pega”, ouvindo em resposta um professoral “isso não pega ninguém”.

O episódio Demóstenes confluiu para a exumação do cadáver do Conselho de Ética do Senado, que após um parto doloroso conseguiu indicar Humberto Costa (PT-PE) para a relatoria do processo contra o senador goiano. Costa viu-se constrangido a aceitar a tarefa depois da recusa dos senadores Renan Calheiros (PMDB-AL), Romero Jucá (PMDB-RO) e Gim Argello (PTB-DF) que arguiram razões de foro íntimo para não aceitar a incumbência. As tais razões de foro íntimo apresentadas pelo brioso trio são bastante familiares à opinião pública.

Diante da antecipada demonstração do entusiasmo em condenar esse tipo de malfeito que alguns componentes do citado conselho certamente irão exteriorizar durante os trabalhos, não seria ilógico concluir que se a mesma régua milimétrica utilizada na legislatura passada para medir padrões éticos de pais da pátria, dentre eles o próprio Renan Calheiros, for aplicada ao comportamento do indigitado colega, esse poderá dormir o sono dos justos.

Outra vertente que esparge um facho de luz sobre o pensamento predominante na atual conjuntura política, é a súbita má vontade que baixou sobre governo e oposição em levar adiante a Comissão Parlamentar de Inquérito Mista (CPIM), que no princípio se assemelhava a autêntico tsunami que, principalmente, o anêmico protagonismo  petista festejava ter à disposição para destroçar a oposição e, de acordo com a exegese do presidente nacional da legenda, Rui Falcão, acabar de vez com “a farsa do mensalão”.

Quando ficou claro que o governador Agnelo Queiroz (DF) e o deputado federal Rubens Otoni (GO) – ambos petistas – também estiveram a bordo do comboio de agentes públicos tracionado pela locomotiva que atende pelo nome de Carlinhos Cachoeira, o Palácio do Planalto que antes estimulara a instalação da CPI, da noite para o dia passou a tratar a questão com imensa reserva, desencadeando a operação abafa.

A saia justa tornou-se inevitável quando a Delta, empresa de engenharia e construção civil presidida por Fernando Cavendish, um parvenu desembarcado no cenário dos grandes negócios, dono da empreiteira que, somente por acaso, recebe mais dinheiro do governo federal pelo encargo de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), ganhou espaço na mídia como um dos tentáculos do poderoso bicheiro que – tudo leva a crer – tem como modelo o pernicioso o doutor Mabuse, o homem dos mil olhos…

Compartilhe

3 ideias sobre “O homem dos mil olhos

  1. Ivan Schmidt

    Aos amigos leitores peço desculpas por alguns argumentos terem sido atropelados pela rapidez com que os fatos se acumulam no cenário federal. O artigo foi escrito no início da semana e na quinta-feira (19) a CPMI foi, finalmente, instalada. E no sábado (21) a Delta foi alijada do consórcio que está reconstruindo o Maracanã. Cachoeira transferido para o complexo da Papuda, como é conhecida a penitenciária de Brasília, desperta a atenção do Conselho de Ética do Senado, temeroso da “queima de arquivo”.
    Muito grato pelo olhar atento de Parreiras Rodrigues e Célio Heitor Guimarães, cuja leitura dignifica esse fragmento do morteiro em forma de blog dirigido pelo flibusteiro Zebeto…

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.