7:02Entrevista imaginária com Jack London

por Ivan Schmidt

Essa é uma entrevista que qualquer jornalista gostaria de ter feito e, certamente se tornaria um ponto alto na carreira de repórteres que dignificaram e dignificam uma profissão nobre, mas tão atacada especialmente por personalidades excêntricas que se julgam acima do bem e do mal.

Há muitos casos em que repórteres se tornaram figuras bastante conhecidas e admiradas por seu trabalho, sendo merecedores do aplauso pelo esforço pessoal, dedicação e credibilidade com que pautaram suas atividades. O próprio Jack London (1876-1916) é um desses exemplos, mesmo tendo sido vítima de muitas intrigas e difamações em face de suas extremadas posições em defesa da liberdade de opinião e da doutrina socialista. A seguir os trechos principais de uma entrevista que esse humilde escrevinhador adoraria ter feito, não fosse o óbvio fator cronológico de ter nascido 24 anos depois da morte do corajoso intelectual norte-americano.

As frases citadas entre aspas representam, em parte, o pensamento de Jack London sobre a sociedade de seu tempo e, em muitas situações verificadas atualmente se encaixam com uma precisão de cronômetro suíço. Não será necessário forçar a barra para localizar na argumentação desse precursor dos escritores malditos, alguns dos muitos paspalhos que pontificam no cenário brasileiro.

Nascido numa família da classe trabalhadora, Jack teve infância difícil vivendo num “ambiente cru, áspero e rude”. Desde cedo o garoto havia aprendido que “não tinha nenhuma perspectiva” a seu redor e “o melhor era olhar para cima”. Jack sabia muito bem que acima dele “se erguia o colossal edifício da sociedade, e para minha mente a única saída era para cima. Dentro deste edifício logo decidi subir. Lá em cima, os homens vestiam ternos pretos e camisas engomadas e as mulheres usavam vestidos lindos. Havia também coisas boas para comer e havia fartura. Abundância para o corpo. Depois havia as coisas do espírito”.

Essa foi uma atração especial na vida de Jack, pois ele logo descobrira que naquele ambiente refinado havia intensa vida intelectual. “Eu conhecia tudo isto porque lera romances da Biblioteca Seaside, nos quais, com exceção dos vilões e aventureiros, todos os homens e mulheres tinham pensamentos lindos, falavam uma linguagem bonita e realizavam ações generosas”. Para Jack essas virtudes elevadas eram aceitas como o nascer do sol a cada manhã.

Contudo, a ilusão logo foi substituída pela realidade e o jovem concluiu não ser “particularmente fácil para um homem ascender e sair da classe trabalhadora – especialmente se ele está tomado por ambições e ideais”. Nessa época ele vivia num rancho na Califórnia, mas antes, aos dez anos de idade trabalhou como jornaleiro, experimentando a “sordidez e a desgraça”, embora “acima de mim ainda estava o mesmo paraíso esperando para ser conquistado”. Descobriu o mundo dos negócios e que poupar os ganhos investindo em papéis do governo, comprando dois jornais por cinco centavos e vendendo-os a dez, a fim de dobrar o capital, era o caminho para subir na vida.

Aos 16 anos Jack se considerava um capitalista. Diz ele ser possuidor, na época, de “um barco e uma tripulação completa de piratas de água doce. Eu tinha começado a explorar meus semelhantes. Tinha uma equipe sob comando de um só homem. Como capitão e dono ficava com dois terços da grana e dava à tripulação um terço, embora eles trabalhassem tão duro quanto eu e arriscassem tanto quanto eu suas vidas e sua liberdade”. Foi o máximo que Jack atingiu no mundo dos negócios e ele mesmo reconhece. “Uma noite, participei de um assalto a pescadores chineses. Suas linhas e redes valiam dólares e centavos. Era um roubo, eu admitia, mas era este precisamente o espírito do capitalismo”. A definição de London, anos depois, era rudemente chocante: “O capitalismo toma os bens de seus semelhantes a título de reembolso, ou traindo a confiança ou comprando senadores e juízes de tribunais superiores. Eu era simplesmente grosseiro. Essa era a única diferença. Eu usava um revólver”.

O assalto ao barco chinês foi um fracasso. Jack soube, então, que “tinha escorregado de volta o primeiro degrau que havia subido, e nunca mais tentei o caminho dos negócios”. Nos anos seguintes perambulou de emprego em emprego, explorado por patrões inescrupulosos. Até que um dia resolveu tornar-se vagabundo e mendigo de porta em porta, vagando pelos Estados Unidos, “suando sangue em favelas e prisões”. Aos 18 anos estava “abaixo do ponto no qual tinha começado’, literalmente “caído nos porões da sociedade, jogado no profundo subterrâneo da miséria a respeito da qual não é agradável nem digno falar: eu estava no fosso, no abismo, no esgoto humano, no matadouro, na capela mortuária de nossa civilização. Esta é a parte do edifício social que a sociedade prefere esquecer”.

Dentre as duras lições de vida aprendidas no dia a dia por Jack London, autor de clássicos como O lobo do mar e Chamado selvagem, uma das maiores expressões da literatura de aventuras do início do século passado, está a compreensão de que “o comerciante vende seus sapatos, o político vende seu humanismo e o representante do povo, com exceções, é claro, vende sua credibilidade; enquanto quase todos vendem sua honra.”. Com visão aguda, o literato diz que todas as coisas são transformadas em mercadorias, todas as pessoas compradas e vendidas: “A primeira coisa que o trabalhador tinha para vender era sua força física. A honra do operariado não tinha preço no mercado. O operariado tinha músculos e somente músculos para vender”.

Desencantado, London regressou à Califórnia em busca de conhecimento, agora convencido de que deveria se transformar em mercador de inteligência. Mergulhou nos livros de sociologia para descobrir em formulações científicas, o que havia tentado compreender por experiência própria. “Descobri uma fé calorosa no ser humano, um idealismo apaixonante”, constatou, mas apesar do sucesso fulminante como mercador de inteligência, freqüentando o andar de luxo da sociedade, a sensação de malogro e decepção não tardou a chegar. Jack andou na companhia de pregadores, políticos, homens de negócios, professores e editores e, admite ter encontrado “muitos que eram honestos e nobres; mas, com raras exceções, não estavam vivos”. Ele queria dizer com essa imagem corrosiva que a maioria daqueles homens de riqueza e sabedoria era “como múmias bem preservadas, mas não vivas”.

“Percebi que não gostava de viver no andar de luxo da sociedade”, afirmou London, que então voltou à classe operária, na qual havia nascido e à qual pertencia, para trabalhar ao lado de intelectuais, idealistas e operários com consciência de classe, “reunindo uma força sólida agora para mais uma vez por o edifício inteiro a balançar”. Não sobreviveu, entretanto, para ver o sonho realizado.

(Os comentários realistas e sarcásticos da entrevista imaginária com Jack London foram extraídas da narrativa ficcional, mas altamente autobiográfica “O que a vida significa para mim”, incluída no volume De vagões e vagabundos, publicado pela editora LePM, de Porto Alegre, em 1997. Pela transcrição agradeço).

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