17:15Eu, espectador

por Ivan Lessa*

O nome da revista é “The Spectator”. Como quase tudo mais no Reino Unido foi às bancas e entregue às casas de seus assinantes em 1828.

Quase tudo mais? No sentido de que não só os programas de calouros ineptos e telenovelas realistas datam de 1828.

Muitas coisas foram boladas ou paridas depois desse annus mirabilis. Charles Dickens, por exemplo, só viu a luz do dia, já tomando as devidas notas para futuras referências, em 1812, ano que serviu de pretexto para aquela célebre overture de Tchaikovsky, composta em 1880, para comemorar e legar às futuras gerações a derrota do Grande Armée de Napoleão em Borodino diante das forças russas.

O genial compositor, também chegado a romantismos, perdeu as estribeiras e, entre os címbalos e os tambores, colocou um canhão de verdade para disparar contra a plateia que, coitada, estava presente à primeira noite do evento com a única e exclusiva intenção de participar da comemoração musical.

Entre mortos e feridos, salvaram-se todos, ao contrário da batalha de Borodino.

O feito de botar armas de fogo de qualquer calibre entre orquestras de música erudita ou bandas populares só voltou a se repetir na década de 40 do século passado, quando o cantor Fernando Fernandez, ao final de um bolero mórbido, Hipocrita, acho, gritava “adiós, vida cruel!”, sacava de um revólver do bolso interno do casaco e dava um tiro na cabeça, deixando-se cair mortalmente ferido no palco do auditório em que se apresentava.

Frise-se, para os ingênuos, que o tiro era de pólvora seca. Pura encenação ultrapassada que deveria ser adotada à vera, ou seja, com bala pra valer (veneno ou facada no peito também seriam apreciados), por muitos cantores e bandas que hoje andam fazendo sucessos pelas esquinas de má fama da vida.

Tudo isso e mais alguma coisa em matéria de cultura inútil, mas nem sempre barulhenta, aprendi graças à minha assinatura da revista “The Spectator”, conforme vinha falando antes dos maus pensamentos me levarem a outros caminhos nesta selva obscura de pedra e aço em que vivemos num mundo cada vez menos verde de intenções e mais vermelho de sangue e negro de maus pensamentos e ações.

Faço literatura graças à assinatura da revista em questão, que me acompanha há já umas boas quatro décadas.

Ela é meu violão, minha cachaça, minha melhor amiga. Fala pouco, informa muito sempre de forma variada e inteligente, não me interrompe por motivos fúteis, não implica com minha tossinha e meu xarope. A companheira ideal.

Outras revistas assinei e foram devidamente deixadas de lado quando suas vidas de flores feneceram. “Metronome”, sobre jazz, “Cahiers du Cinéma”, sobre pensamentos sombrios de homens vivendo na negra solidão das salas de exibição cinematográficas, o “London Review of Books”, para impressionar no metrô loirinhas de óculos e muitas outras mais.

O “Spectator” ficou e ficará. É até que a morte nos separe. A minha com toda certeza. Sem choro, vela, tiro de canhão ou revólver de bolero. Fita amarela apenas.

Eu começo a ler o “Spectator” na sexta-feira, dia em que o carteiro, o Kevin, que vai levar um bom tip este ano, a deixa lá embaixo e faço render, como se tomando insuperável sorvete de dulce de leche com Crème Chantilly e faço render até quinta-feira de noite.

Até as palavras cruzadas já tentei, não estivesse eu no Reino Unido. Busquei a lógica do jogo de bridge. Estalo a língua diante das dicas para enófilos. E leio, de cabo a rabo, para me lembrar da época em que eu lia Fon-Fon, no Brasil.

Crises na liderança do país, coalizão em ruínas, eurozorras na eurozona, pactos fiscais, previdências sociais, reformas na magistratura, resenhas de óperas e exposições, nada disso me é estranho, acontece comigo em minha casa.

Esquecível, sim. Estranho, não. Tal como deve ser com tudo que for conservador (com C minúsculo) e à direita do centro.

Eu que procurava desde que passei a poder entrar em buate o que era e onde ficava a famosa “direita do centro” e nunca encontrava.

O “Spectator”, em sua edição da semana passada, me deu uma receita antiga: como os egípcios preparavam suas múmias. Tudo muito explicadinho, fascinante de ler e vou logo adiantando que o cérebro era retirado pelas narinas. Paro por aqui para não ferir sensibilidades de eventuais leitores.

Livro não tem mais jeito. Vai ser tudo eletrônico. Sobram as revistas. Recomendo “The Spectator” e uma assinatura da “Veja”, só para não dizer que eu não falei de flores.

*Colunista da BBC Brasil

Compartilhe

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.