6:39Uma janela para a vida

“Não fique perto da janela” me disse a voz do outro lado do telefone. Era uma precaução de quem já tinha passado por aquilo e vivido experiências como aquela – a de receber o telefonema de um drogado pedindo ajuda no início de uma manhã como esta. Do lado de cá da linha eu não pensava em suicídio, afinal estava me matando inconscientemente há anos, provavelmente décadas. O quarto era de um hotelzinho na avenida Iguaçu. Tinha chegado ali depois de passar por outro, na rua Dr. Muricy. Na véspera ainda tentei trabalhar na redação do jornal. Nos últimos quatro dias eu tentava dar cabo às 20 gramas de cocaína que comprara do traficante. Como conseguia levantar dados e escrever reportagens sobre os três times da capital é algo que até hoje não consigo entender, mas sei que o esforço era descomunal, pois a toda hora estava injetando a droga na corrente sanguínea. Na véspera do pedido de socorro não consegui escrever. Avisei ao chefe da sucursal que tinha recaído. Ainda passei os dados para um companheiro de redação e ele escreveu as matérias do dia dentro do prazo para não atrasar o jornal. Tentaram me impedir de sair dali. Mas eu saí. Precisava de mais uma dose. Naquela noite tive convulsões estirado na cama do hotel da Muricy. Se fosse uma overdose não estaria aqui contando essa história. Seria achado morto, talvez com uma seringa espetada no braço esquerdo, onde estavam as veias de minha preferência e uma ferida horrorosa estava aberta. Quando telefonei não pensei em tratamento, buscar o caminho da sobriedade ou coisa parecida. Em meio ao horror da paranóia, natural para quem usa cocaína, não há como pensar nisso. Na verdade eu estava cansado de me drogar e não via saída para nada. Quando entrei na clínica, ainda restava um pouco da droga. Era o terceiro internamento num prazo de quatro anos. O primeiro, por causa do álcool, que cortei e substituí pela cocaína. Até hoje, nas palestras que dou como voluntário ou onde quer que me chamem para falar dessa doença, digo que comecei no líquido, passei para o sólido em forma de pó e voltei para o líquido, a droga diluída para ser injetada. Isso para explicar que a dependência é a doença e é para todas as drogas, principalmente para as que não conheci, completo. Entrei na clínica num dia 24 de outubro como hoje. O ano de 1994. Só por hoje não me droguei mais. Todo final de semana entro na Quinta do Sol para ficar duas horas ao lado de quem está em tratamento. É o meu plantão. Quando tenho oportunidade digo o que aprendi neste tempo que é o mesmo que o de quem entrou no dia anterior como eu entrei naquele sábado em que pedi ajuda, pois a gente descobre que é possível viver sem a droga: somos privilegiados, pois não há experiência de vida igual. Há sempre olhares de interrogação. Eu completo: com a sobriedade a gente pode comparar. E aí aprendemos a dar valor ao que é normal. Nada muda, os problemas continuam, mas retomar o controle da própria vida é algo difícil de descrever. A possibilidade de se controlar o uso das drogas, que é sintoma da doença que não tem cura e cujo cerne é emocional, daí o tratamento ser feito à base de terapia e, em alguns casos, com a ajuda de medicamentos para tal, é uma dádiva que, infelizmente, muitos não conseguem entender – e morrem antes do tempo por isso. Naquele dia, há 17 anos, o jornalista Marcio Varela, meu colega da sucursal do jornal Folha de Londrina, foi me buscar depois de recomendar que eu ficasse longe da janela. Duas semanas depois, ao ouvir numa reunião de Alcoólicos Anônimos uma voluntária de nome Carlota ler sobre o “Só por hoje”, a janela da vida voltou a se abrir para mim. Estou olhando por ela até agora. Sou feliz e grato a todos que me ajudaram e me ajudam a entender que é possível.

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17 ideias sobre “Uma janela para a vida

  1. Rodrigo Fornos

    Amigo Zé Beto:

    A vida é exatamente o retrato desta foto aqui mais embaixo: um oceano ensolarado com nosso barquinho a navegar, escolhendo, como bem quiser, qual percurso seguir.

    Seu caminho foi escolhido por você. Caminhar sob os espinhos partiu da sua vontade e do seu desejo de renascer com a ajuda dos nossos guias, nossos “anjos”, se preferir.

    Deus, este grande Arquiteto do Universo, com sua bondade e sabedoria e respeitando seu livre arbítrio, abriu-lhe as portas do belo e do grandioso mar ensolarado para que você, com amor e dignidade, navegasse por mais tempo a fim de completar sua jornada ensinando sobre a maravilha que é estar vivo.

    Um forte e fraterno axé,

    Rodrigo

  2. Velho de Guerra

    Quando se permite querer, sempre é possível ser feliz ! Parabéns por mais este 24 de outubro de janelas abertas.

  3. Caxias

    Tenho orgulho de ser seu amigo, é isso ai, muita personalidade, coragem e desprendimento. abraços Caxias

  4. Silvia

    é isso ai, ZéBeto! você é a prova viva de que é possível uma vida sem drogas. não é fácil, mas não é impossível.

  5. Wilson Portes

    Caro Zé Beto
    “Una lacrima sul viso…” foi a frase que me veio à cabeça durante a leitura de seu primoroso texto. A descrição de sua viagem ao inferno das drogas deveria ser objeto de leitura e debate em todos os espaços em que se combate, preventivamente ou não, essa maldição dos tempos atuais.
    Vá em frente Zé, sou e serei sempre um dos seus amigos virtuais.

    Abs. e que o GADU te proteja.

    Wilson

  6. angélica

    De um sobrevivente para outro: você conseguiu abrir uma janela, enxergar a luz, entender a mensagem e saltar para um novo caminho, livre de amarras. Maravilhoso! Mas não foi só isso. Ajudou outros a abrir janelas, como eu. E continua cuidando deles, com a bondade de um anjo. Parabéns!

  7. ruth bolognese

    Zé,
    Eu te amo, Zé. Por tudo e por esse jornalista íntegro que se tornou. Tantos anos de convivência e eu ainda fico mirando seu exemplo,
    Milhões de beijos, ruth

  8. Jose Maria correia

    Grande Xara , volto a insistir na edicao do livro e por dois motivos , a qualidade literaria e o mais importante o depoimento muito valioso para ajudar as pessoas a libertar se do vicio como voce fez. Raros sao os que tem coragem de se expor a hipocrisia social como no poema de F Pessoa ” nunca conheci quem tivesse levado porrada , tods os meus amigos sao campeoes em tudo , tds principes e eu, tants vezes reles , tnts vezes vil… ” abracos jose maria

  9. Ivan Schmidt

    Zé Beto, que maravilha poder comemorar contigo o exemplo de uma vida que renasceu, como Fênix, das cinzas da destruição que seria inexorável… que momento milagroso (e foi mesmo!) aquele em que você tomou a decisão de “só por hoje NÃO”… o qual tem encarado com a dignidade dos fortes. Graças pela vida!

  10. Célio Heitor Guimarães

    Zé, foi um previlégio tê-lo conhecido e é uma honra enorme poder marchar ao seu lado. Paz, saúde e muita força!

  11. Zero

    É como escreveu o Domingos Pellegrini: “o cinza é bonito / se você pensa que além / tem todo o infinito”. E você conseguiu enxergar esse infinito da vida que renasce. Parabéns e abraço.

  12. Leitora

    Zé Beto,
    Ter serenidade para escrever este belo depoimento é a maior prova de que valeu a pena. Você comemora e nós, leitores da sua coluna, é que recebemos o presente. Obrigada.

  13. swissblue

    Expressionante como costuma dizer o dono do blog. Meus cumprimentos pelo depoimento forte e corajoso. Obrigado por compartilhar e que sirva de exemplo a quem necessitar. Sempre existe a esperanca.

  14. zebeto

    A todos os leitores que aqui comentaram e aos que não se manifestaram mas, tenho certeza, pensam como os que escreveram, só posso dizer que essa manifestação de carinho e compreensão é fundamental para a manutenção da sobriedade de quem conseguiu recuperar o controle sobre a própria vida. Mais que isso, essa ajuda é um sinal de luz aos portadores dessa doença que ainda sofrem dentro e principalmente fora das clínicas. Muito obrigado. Saúde.

  15. Daysi Balsini

    Ze não te conheço pessoalmente, todos os dias abro seu blog e ha algum tempo atras li um outro depoimento seu sobre sua doença. Eu particularmente te entendo hoje, por intermédio de meu filho Evandro que atualmente se encontra em tratamento numa comunidade terapéutica. Aprendi com ele para poder ajudar. E aprendo todos os dias com a admiração que aprendi a ter por voce! Gostaria que meu filho tivesse a oportunidade de ouvir uma palestra sua. Quem sabe podes visita-lo …Um abraço forte e obrigada por ser quem é e existir!

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