9:57HERDANDO UMA BIBLIOTECA

Tudo que não é literatura me irrita (Kafka)

por Miguel Sanches Neto

ECONOMIZANDO LINHAS

, eu sofria o patrulhamento de meu padrasto. Ele numerava as folhas de nossos cadernos, para que não as gastássemos com coisas fúteis. Quando um professor pedia para escrever algo e entregar para ele, eu entrava em pânico. Pedia para o colega do lado uma folha emprestada, sempre recebendo junto um olhar de desprezo. Por que não tirava de meu próprio caderno? É que ele não me era tão próprio assim.

Além de numerar as folhas, meu padrasto fiscalizava os cadernos para ver se estávamos preenchendo bem as linhas, pois não admitia desperdício.

Assim eram os pais; assim era a vida dos pobres na minha infância; assim eram esses seres errados que um dia fomos.

Meus irmãos não sofreram com a redução das margens de nossos cadernos. Mas eu já me sonhava escritor. E queria escrever meus poemas. Então me sentia censurado.

Quando me tornei economicamente independente, comecei a comprar cadernos. Sempre tenho vários comigo. Pois pode haver coisa mais reconfortante para um escriturário da literatura do que saber que temos ali várias páginas em branco, um estoque de linhas nos solicitando?
Testei vários cadernos. Dos mais sofisticados – os moleskines – a cadernetas de feirantes. E elegi o meu caderno oficial: o Opus capa dura, costurado, nas cores: azul, verde, vermelho, preto ou bege. Tamanho 190mm por 248 mm, com 100 folhas. As linhas são generosas, adequadas para quem gosta de escrever com letra grande, o visual é sóbrio, o formato lembra um pouco os antigos cadernos de contabilidade. E eles podem ser guardados na estante como se fossem livros.

Nesses cadernos mantenho, desde o dia 25 de março de 2007, um diário íntimo (Diários Indignos), velho projeto que só consegui consolidar quando encontrei um suporte ideal. Havia tentado várias vezes antes, mas sem sucesso.

O Opus me oferecia margens amplas, formato manuseável, uma sensação de seriedade. A última compra que fiz, 5 cadernos, foi numa livraria em Brasília. Distribuí alguns para amigos, e agora estou no final do último caderno – faltam apenas 4 páginas para ele acabar. Adio as anotações no diário, pois não quero ter a sensação de que me tiraram o caderno, que me proibiram de continuar escrevendo.

Tudo porque a Tilibra parou de produzir o Opus. Pelo menos, tiraram o caderno do site, deixando apenas uma versão chamada Organizer, que é daqueles em que se destacam as folhas. O meu velho Opus sumiu também das livrarias e papelarias. Não consigo mais encontrá-los.

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