23:19À sombra do governo

por Matias M. Molina*, no jornal Valor Econômico:

Ruy Barbosa condenou com veemência o sistema de “subvenções”, apontando para o Ministério das Relações Exteriores, “a maior barraca da feira, a comprar e vender, aqui e no estrangeiro”.
Justiniano José da Rocha, que já foi considerado o maior jornalista brasileiro, fez um discurso ímpar na história do Parlamento. Contou como ele e mais dois companheiros da redação do jornal “O Brasil”, que defendia o governo do Partido Conservador, receberam como presente escravos africanos que tinham sido apreendidos durante a repressão ao tráfico. Poucas vezes foi exposta de maneira tão direta a dependência da imprensa em relação ao governo.

Segue um longo resumo do discurso, registrado nos anais da Câmara de 1855, quando Rocha era deputado:

“Nós três abundávamos nas ideias ao Ministério, sustentávamos a luta na imprensa, e nesse tempo nenhum favor material me foi feito, nem nós pensávamos em favores materiais. E, senhores, já que falo nisso, vá uma pequena revelação. Distribuíam-se africanos e eu estava conversando com o Ministro que os distribuía e S. Excia. me disse:

“Dinheiro haja” era alusão aos gastos excessivos com que o barão [do Rio Branco] alimentava sua diplomacia”, diz Danton Jobim

– Então, Sr. Rocha, não quer algum africano?

– Um africano me faria conta, respondi-lhe

– Então, por que não o pede?

– Se V. Excia. quer, dê-me um para mim e um para cada um dos meus colegas.

O Ministro chamou imediatamente o oficial de gabinete, e disse-lhe:

– Lance na lista um africano para o Dr. Rocha, um para o Dr. Fulano e outro para o Dr. Beltrano…”

O ministro era Bernardo Pereira de Vasconcellos. Os drs. Fulano e Beltrano, os jornalistas Firmino Rodrigues Silva e Josino Nascimento Silva.

(Justiniano José da Rocha tinha feito uma campanha contra o tráfico de escravos protestando contra a frouxa repressão e contra o direito de propriedade que o Estado se arrogava ao apreender os africanos vindos de contrabando, para distribuí-los de forma ilegal e imoral para estabelecimentos públicos e para pessoas ligadas ao poder e às quais queria o governo subornar ou obsequiar. Em outra ocasião, reclamou da maneira de distribuir os escravos, pois “os inimigos do Ministério foram tanto ou mais bem aquinhoados que os seus amigos”. Quando chegou a oportunidade, ele e seus amigos se aproveitaram dessa prática que antes considerava ilegal e imoral).
O presidente Campos Salles reconheceu em suas memórias o pagamento de subsídios aos jornais, que considerava ato inevitável, legítimo e não ofensivo à moral pública.
Prosseguindo em seu discurso, Rocha expôs suas misérias. Disse que era um jornalista pobre, fiel à causa conservadora, mas tinha família numerosa e enfrentava dificuldades: “Casei-me sem o dote o mais insignificante, casei só por inclinação e Deus abençoou o meu consórcio dando-me um filho por ano”. Mas “escrevíamos um periódico, desamparados de todos, e ignorando nós mesmos o nosso destino”. Só em 1841, disse, é que “O Brasil” recebeu ajuda do chefe do gabinete [primeiro-ministro] conservador, Paulino José Soares de Sousa.

“O Sr. Paulino se entendia com a tipografia, administração e distribuição da folha. Nós nada disso sabíamos, nem queríamos saber. Escrevíamos e mandávamos nossos artigos à tipografia. Às vezes, senhores, eu, que tinha família numerosa, (o orador começa a soluçar) (…) também a desgraça veio parar sobre a minha família, levando-me o pai. (A voz do orador fica suspensa pela comoção, e vários dos Srs. Deputados lhe dirigem palavras consoladoras).

“Então, o Sr. Paulino em remuneração do trabalho insano da sustentação de um periódico, dava-me de vez em quando um papel dobrado e nele algumas notas de 200 mil réis (o orador continua em pranto). E, senhores (com força), eu vivia com família numerosíssima, e digo esta verdade que não me pode ficar mal. (…) E, senhores, nunca me supus rebaixado quando o Sr. Paulino, em troca de um trabalho de 14 horas me dizia: ‘Rocha, aqui tens'”.

“Disse que vivia com a maior economia, privado de todos os regalos, sem teatro, nem visitas, nem festas, lutando para sustentar a família. Sua esposa só vestiu sedas em 1848, quando ele era deputado, e vivia numa casa térrea, de rótula.

Em 1923, o embaixador da França escrevia que os jornalistas brasileiros serviam àqueles que lhes pagavam mais

“O Sr. Paulino decidira suspender a circulação d’O Brasil”, mas Rocha quis continuar e, “sem o haver pedido nem solicitado”, recebeu “o auxílio avultadíssimo” de 600 mil-réis. Mas depois chegaram as dificuldades. “Nesse tempo ninguém perguntou: ‘Como vive o Rocha? O que dá de comer a seus filhos?'”

Disse que morava numa “casinhola” e que ficou doente: “Deus quis levar-me deste mundo… antes o houvesse feito…”. “Restabeleci-me.” (Na verdade, cinco anos antes ele tinha mudado para uma casa “construída com parcimônia e gosto, decorada com (…) simplicidade e arte”, e com “belo aspecto do edifício”, segundo escreveu José Maria da Silva Paranhos, futuro visconde do Rio Branco, em sua seção “Cartas ao Amigo Ausente” no “Jornal do Commercio”).

Rocha afirmou que “com mais ou menos generosidade, todos os Ministérios têm auxiliado, concorrido para os gastos da imprensa; quando sei que caracteres muito nobres têm recebido esses auxílios sem desar, nunca supus que isso me fosse desairoso… Eu estava na firme persuasão que, recebendo este auxílio para a despesa da tipografia, auxílio de que raras migalhas podiam ficar, (…) o Governo não me fazia nenhum presente, o Governo não se desonrava fazendo-o. (…) E eu, pela minha parte entendia que nada havia nisso de infamante para o caráter de um homem de bem”.

Acrescentou que a sua consciência estava “firmemente persuadida (…) que pagar trabalhos reais, feitos a bem de interesses públicos, não é corromper, seduzir e comprar; vil seria eu se um só dia, uma hora somente tivesse escrito em política contra a minha opinião. Nunca o fiz, nunca hei de fazer”.

Barbosa Lima Sobrinho escreveu que a ausência de uma imprensa partidária isola os governos, privando-os de defesa: “Que fazer, senão acudir-se do processo das subvenções?.
Ele se considerava credor. Avaliou que os serviços que prestou como jornalista “estão muito acima do que por eles foi dado” e que tinha recebido uma paga ridícula pela sua dedicação aos correligionários. E “o que fiz foi na persuasão de que não era indigno, nem me aviltava: não o fiz escondido, fi-lo assinando recibos”.

Num desafio ao governo, Rocha fez um requerimento para pedir as listas de todas as comissões de serviço especial não previstas no orçamento, com o nome e data de quem recebeu. Dessa maneira, expôs publicamente o ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, que lhe pagava os serviços de jornalista com a verba secreta da polícia.

Seu requerimento foi, evidentemente, recusado pela Câmara: o governo não tinha nenhum interesse em revelar a quem corrompia nem quanto gastava para comprar opiniões favoráveis. Era uma prática corrente. Nas contas secretas dos ministérios de que participou Nabuco de Araújo, segundo escreveu seu filho Joaquim Nabuco, há recibos dos jornalistas que recebiam o dinheiro – como Rocha. Mas nunca deu o nome de quem recebeu.

O discurso de Rocha ficou famoso, tanto por revelar de maneira chocante um caso de pagamento do governo a um jornalista, como pelo tom lacrimoso e de autocompaixão. Mas estava longe de ser um caso único ou excepcional. A história dos subsídios à imprensa é, numa extensão muito maior do que tem sido reconhecido, a história da imprensa brasileira. Uma boa parte dos jornais, grandes e pequenos, tem vivido à sombra do poder público.

Desde o início, na imprensa brasileira não faltaram casos de subsídios, ajudas, subvenções e favores. Já em 1821, quando os jornais deixaram de ser censurados, um grupo de 65 maranhenses mandou carta ao imperador dizendo que o governador e capitão-general da província mandava pagar 50 mil-réis por mês a um dos redatores do periódico “Conciliador” e que o nomeou o oficial-mor da Secretaria do Governo, “com ordenado e tudo”, e depois foi nomeado diretor da Imprensa, em remuneração aos elogios e hinos que fez ao general.

O senador Manuel Francisco Correa, que ocupou vários cargos públicos, justificou a compra da opinião da imprensa mencionando um observador inglês que dizia: “Não quero graças com quem dispõe de um jornal, sobretudo se goza de crédito. Ele pode despejar todos os dias contra mim a metralha de tantas bocas de fogo quanto são os seus leitores”. Correa sugere: “Para fazer calar essa formidável artilharia, banquetes, festas, afagos, e se por infortúnio tal é o caso excepcional… dinheiro”. Quando ele participou de um ministério, o governo pagou os jornais, mas disse que tinha o atenuante de que o dinheiro se destinava a pôr fim ao regime de escravidão. Correa escreveu que o “ministério presidido pelo Conselheiro Manuel Pinto de Souza Dantas, empenhado também na extinção do elemento servil, foi bastante largo na despesa com a imprensa”. Correa também conta um episódio curioso e totalmente incomum. O Ministério da Justiça manteve uma folha com a verba secreta, mas tal foi a procura que o periódico deixou lucro. O ministro ficou bastante embaraçado para resolver o problema de como fazer para que essa receita extraordinária e inesperada, proporcionada pelo lucro do jornal, entrasse no balanço do exercício financeiro.

Durante o Império, o marquês do Paraná disse que “é sabido geralmente que em toda parte onde há sistema representativo o governo não pode durar muito lutando contra a imprensa, se em face dessa imprensa não houver quem o defenda, quem justifique sua política. (…) Não pretendo que este ministério seja diferente dos outros.”

Um editorial do jornal monarquista “O Commercio”, de São Paulo, dizia, em 1897: “Infelizmente, no Brasil, a maioria da imprensa está dividida em duas classes: a primeira goza direta ou indiretamente dos benefícios do Tesouro, a segunda pretende gozar deles.” Anos mais tarde, “O Commercio quis entrar nessa segunda categoria ao pedir ao Tesouro paulista uma participação nesses benefícios.

O presidente Manuel Ferraz de Campos Salles (1898-1902) reconheceu em suas memórias “Da Propaganda à Presidência” o pagamento de subsídios aos jornais. “Não corrompi a imprensa”, escreveu. Disse que, quando foi ministro do governo provisório, eliminara a verba secreta. Mas como presidente, e ante os ataques dos jornais, “não duvidei em enveredar por esse caminho francamente aberto e trilhado pelos que me antecederam”, e afirmou que mantinha a convicção da legitimidade do ato perante a moral pública. Disse que a verba secreta foi de apenas um milhão de réis: “Se isso constitui um crime, eu o confesso, sem declinar de minha responsabilidade inteira”. Campos Salles entrou na história como exemplo de corruptor de jornais. É provável que fosse, como escreveu, mais moderado do que seus antecessores e sucessores nos gastos com a imprensa. Mas, como reconheceu em suas memórias ter feito os pagamentos, enquanto outros os ocultaram ou os minimizaram, o seu nome passou a ser paradigma de corrupção.

Ruy Barbosa, em seu discurso “A Imprensa e o Dever da Verdade”, condenou com veemência o sistema de “subvenções”, que ele qualificou como “venalidade propinada pelos nossos governos à imprensa”. Ele aponta os canais pelos quais escoava o dinheiro: “Era, primeiramente (à tout seigneur tout honneur), o Ministério das Relações Exteriores, a maior barraca da feira, a comprar e vender, não só aqui, mas no estrangeiro, e a que o privilégio de sacar sobre a nossa delegacia em Londres ensanchava, nas suas operações, facilidades invejáveis”.

O economista Eugênio Gudin lembrou da generosidade do ministro das Relações Exteriores, o barão do Rio Branco: ele “dava muita importância à publicidade, conquanto não em proveito próprio. Não hesitava, porém, em gastar, mesmo na imprensa europeia, quando julgava oportuno elevar o conceito do Brasil. Desse e outros saiu o refrão ‘Dinheiro haja, senhor Barão’, atribuído ao grande presidente Rodrigues Alves”. Realmente, o refrão “E…dinheiro haja!” passou a ser muito utilizado com referência ao barão. Danton Jobim diz que “Dinheiro haja” era a alusão obrigatória “aos gastos excessivos com que, segundo voz corrente, o barão alimentava sua diplomacia.”

Mas se o governo brasileiro comprava a opinião dos jornais estrangeiros, os governos estrangeiros também subornavam a imprensa brasileira. Em 1923, o embaixador da França escrevia que no Brasil, “mais do que em qualquer outro país, o jornalismo é uma atividade que deve reportar benefícios a quem nele trabalha. Os jornalistas brasileiros estão automaticamente do lado de quem paga mais. Nós podemos estar entre eles: é uma questão de dinheiro”. Em 1924, Assis Chateaubriand procurou a embaixada da França para pedir ajuda financeira em troca de “promessas de neutralidade e mesmo de amizade”.

O mesmo Chateaubriand foi acusado pelo interventor federal em Pernambuco, Carlos de Lima Cavalcanti, de ter recebido cem contos de seu antecessor, Estácio Coimbra, pela publicação nos “Diários Associados” de informações favoráveis. Chatô reagiu dizendo que aquilo não era nem imoral nem ilegal, mas uma prática comum.

O jornalista Barreto Leite Filho disse que todo jornal subvencionado pelo governo federal era automaticamente subvencionado pelos governos estaduais. “Havia alguns raríssimos governos estaduais, entre os quais o do Rio Grande do Sul, porque Borges de Medeiros era um homem extraordinariamente austero, que não davam dinheiro a jornal nenhum.” No entanto, segundo Nelson Werneck Sodré, Borges de Medeiros dava dinheiro aos jornais “A Federação” e “O Paiz”, a pedido do presidente Washington Luís.

Não eram só os jornais. Os jornalistas também receberam sua parte na distribuição generosa de dinheiro, prebendas e empregos do governo. Até meados do século XX, o trabalho na imprensa era mal remunerado e exigia, para sobreviver, uma fonte de renda alternativa. Recebiam dinheiro e empregos públicos pelo fato de serem jornalistas.

Miguel de Arco e Flexa, que foi diretor de “A Gazeta”, de São Paulo, escreveu que no começo do século XX, quando ele entrou na imprensa, “trabalhar em jornal (…) significava obter um ‘passe-par-tout’. (…) Trabalhar em jornal era um ‘bico’. (…) Assegurava, a quem fosse admitido no círculo fechado que era a imprensa daquele tempo, uma esperança de tornar-se alguma coisa no ‘mundo’. Por exemplo, fazer-se funcionário público para assegurar-se, no fim do mês, um vencimento certo.”

Segundo a revista “Cadernos da Comunicação”, “jornais como O Globo, Diário de Notícias, Correio da Manhã, todos eles tinham seus redatores-chefes ocupando excelentes cargos públicos. Lá no Diário Carioca havia um grupo que trabalhava no governo, outro na Câmara de Vereadores, de Deputados e no Senado. Com isso, o jornalista andava no fio da navalha, estava sempre comprometido.”

Como disse José Maria da Silva Perdigão em depoimento à Associação Brasileira de Imprensa (ABI), “em geral, os jornalistas que faziam essa parte política tinham sempre um emprego no Senado ou na Câmara”. Paulo Motta Lima foi ainda mais explícito: “Na maioria dos casos, os jornalistas do governo eram contemplados com nomeações para cargos públicos, em repartições onde não tinham obrigação de comparecer”.

O “Diário Carioca” tem sido apontado como um caso evidente de empreguismo público. O jornal pagava mal e atrasava os salários. Mas a direção arrumava empregos públicos para os jornalistas. Segundo Janio de Freitas: “Quando Juscelino foi eleito, houve uma corrida da direção do Diário Carioca, acompanhada de alguns redatores, repórteres políticos, ao Catete, numa disputa de cargos, de nomeações, absolutamente carnavalesca. Isso sempre foi muito característico do Diário Carioca. Não que fosse só ele, mas isso no Diário Carioca era o fundamental de sua atividade”.

Carlos Castello Branco, que foi nomeado procurador do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), quando trabalhava no “Diário Carioca”, disse: “Durante o governo de Café Filho, Odylo Costa, filho era procurador geral do IAPC. Era meu amigo e, para me ajudar, me colocou como redator do IAPC, a mim e a Ferreira Gullar. (…) Então, eu pedi ao Autran Dourado, que era secretário de imprensa do Juscelino, que me arranjasse um lugar de procurador. E o Autran, muito meu amigo, ia muito em casa, acabou arranjando. E fui nomeado em 1960 pelo Juscelino”.

Esses subsídios têm sido justificados por alguns jornalistas de prestígio. Barbosa Lima Sobrinho escreveu que, sem jornais que os defendam, os governos ficam isolados da opinião pública, e perguntou: “Que fazer, senão acudir-se do processo das subvenções?” Acrescentando: “Justifica-se também, quanto ao profissionalismo da imprensa, a aceitação daqueles auxílios governamentais, uma vez que luta asperamente para manter a sua gazeta. O caso de Justiniano da Rocha, por exemplo, tem defesa. Adepto de um partido político e mantendo sua folha numa época em que o jornal trazia déficit avultado, a subvenção constituía não só uma recompensa de seu trabalho, como o meio de manter a gazeta e, consequentemente, a propaganda do partido a que se filiava”.

Os governos já chegaram a recorrer às ameaças e à violência física para eliminar as críticas. Mas a subvenção e os favores podem ser mais insidiosos e perigosos, para a liberdade de imprensa, do que a ameaça e a violência.

Matías M. Molina é autor do livro “Os Melhores Jornais do Mundo”, em segunda edição Email: [email protected]

Compartilhe

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.