16:29A sujeição do preso à execração pública

por  José Nabuco Filho* 

Uma das mais contundentes afirmativas que se extrai da magnífica obra de Montesquieu (mais clara e fácil de compreender) é a de que “todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites”. Escrita no século XVIII, a frase do autor iluminista continua atual como nunca.

Exatamente para coibir o abuso de poder que as regras de Direito são concebidas como um limite à atuação individual de cada servidor público.

Nada é mais sintomático da precariedade de uma Democracia do que a frequência com que o abuso de poder é cometido. Evidentemente, os mais graves atos de abuso de poder são cometidos por agentes da segurança pública, já que estes lidam com a liberdade do indivíduo. No serviço público, o princípio da legalidade estabelece que o funcionário só pode fazer aquilo que a lei autoriza, exatamente para que seus atos não sejam fruto do arbítrio de quem exerce o poder.

Os inúmeros programas televisivos que abordam como principal atração o crime denotam a forte atração que a violência exerce na população. Paradoxalmente, porém, o impacto da violência do crime retira de grande parte das pessoas a capacidade para perceber as diversas outras formas de manifestação da violência, especialmente a violência do Estado, seja a legal, da pena, e a ilegal, comumente praticada por agentes do Estado.

Dentre estas manifestações ilegais de violência Estatal, claramente afrontosa à dignidade da pessoa humana, consagrada pela Constituição como um dos fundamentos da República brasileira, está a indevida exposição do preso para a mídia. Sem que haja qualquer respaldo legal, frequentemente (evitar a repetição de comumente) o preso é indevidamente exposto ao sensacionalismo.

Exibido (evitar repetição de exposto) como um troféu, o preso é obrigado a ficar algemado à frente de um folder com a reprodução do símbolo do departamento de polícia que o prendeu. Geralmente, o que há é uma prisão provisória, ou seja, sem que haja julgamento definitivo sobre sua responsabilidade penal.

O curioso dessa situação é que a população que se indigna com a violência do crime não sente repugnância ante a violenta situação de uma pessoa, contra a qual existe apenas uma precária prisão processual.

Convém lembrar que não é por acaso que a Constituição inicia, em seu art. 1º, afirmando que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República. A dignidade do ser humano independe de qualquer mérito individual. Todo ser humano, ainda que autor de crime, deve ter respeitada sua dignidade, seja porque a Constituição assim determina, seja porque a violência anterior não legitima a violência do Estado.

Além disso, não se pode perder de vista as nefastas consequências da superexposição do preso. A prisão em flagrante, não raro, é fruto de ato abusivo do policial, o que revela um nível de certeza bastante precário. Muitas vezes o sujeito é preso por ter características parecidas com o autor de um crime praticado momentos antes na redondeza. Embora tal situação rigorosamente não se enquadre na situação legal da flagrância, é comum que se lavre o auto de prisão em flagrante.

Nesse caso, existe grande probabilidade de que o preso não seja o autor do crime, embora a polícia afirme o contrário. Comprovada sua inocência mais adiante, esse homem sofrerá por muitos anos o estigma de ter sido preso, com consequências no trabalho e na convivência social. De nada adiantará alegar que foi absolvido, pois o povo acredita mais no provérbio de que “onde há fumaça, há fogo” que no princípio da presunção da inocência.

Enquanto a população não compreender que o crime é apenas uma das formas de manifestação da violência, a sociedade contribuirá para uma situação de barbárie, onde se acrescenta à ilegalidade do crime a violência ilegal dos agentes do Estado. Um povo que não sabe respeitar a dignidade do preso é um povo que não respeita sua própria dignidade. 

*José Nabuco Filho é mestre em Direito Penal pela Unimep, professor de Direito Penal e Processo Penal da Uniban e de pós-graduação do Centro Universitário Claretiano.

Email: [email protected]

Twitter: @Nabucofilho

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3 ideias sobre “A sujeição do preso à execração pública

  1. Palotina Forever

    Ainda lembro quando a Polícia Federal fez uma operação contra fraude num concurso público e prendeu nos locais de provas vários envolvidos.
    A TV estava lá e eles sairam devidamente algemados. Quase todos escondendo o rosto com panos, camisetas e cabelos. Menos UMA moça, que mesmo algemada manteve sua cabeça erguida e olhava com altivez as câmaras e os policiais.
    Um ou dois dias após, o delegado da PF chamou a imprensa para dizer que a prisão daquela moça havia sido por engano, pois alguém tinha lhe vendido um celular que estava sob investigação. A PF se desculpou.
    O marcante dessa história é que INOCENTES NÃO TEM VERGONHA de serem indevidamente “expostos”. Lógico que ela deve ter ficado furiosa e magoada, mas VERGONHA ela não teve.

    Quando vejo defesas acadêmicas como essas, fico imaginando qual seria o momento para que um marginal ficasse exposto à sociedade que ele mesmo violentou: segundo esses mestres/dândis da academia, a sociedade não deveria “expor” marginais senão após o trânsito em julgado de sua sentença condenatória.
    Imagino a cena: após o esgotamento de todos os artifícios da engenharia jurídica-processual, e o transcurso de todos os prazos , a imprensa dirigir-se-ia ao local da detenção do condenado (obviamente se ele estivesse no xilindró, o que é pouco provável), e estamparia: “Lembram daquele assassino de mulheres que estuprou 12 e matou 6 em 2001? Olha ele aqui !)

    Lembremos que em grande parte das vezes, a exposição pública será a ÚNICA e efetiva pena que o criminoso sofrerá. (vide caso Pimenta Neves, só para lembrar).

    Lembremos também do caso Nardoni (vc acha mesmo que eles seria condenados tão exemplarmente se não houvesse a exposição pela imprensa?)

    Agora, aos acadêmicos-teóricos só posso mandar um recado: não havendo ação efetiva do Estado, legitima-se a vingança privada, pois a justiça não depende do que os autodizentes “doutos” escrevem nas suas teses, artigos e ensaios.

    disse.

  2. Charles Friedrich Jr

    Dr. Nabuco, belas letras, mas, apenas letras. O Senhor já pediu, ou obteve ressarcimento ou a devolução daquilo que estes “presos” subtraíram das suas vítimas? Quando escrevo “presos, são todos aqueles que não souberam respeitar, o que seu texto evoca com robustez,”que não é por acaso que a Constituição inicia, em seu art. 1º, afirmando que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República. A dignidade do ser humano independe de qualquer mérito individual. Ou apenas, aqueles que foram vítimas anistiadas, tem direito a polpudas indenizações? O altar, do seus conhecimentos jurídicos, me detona a inocência. Ou seria ignorância hipócrita, daquilo que na maioria das vezes acontece nas delegacias ? Sempre há um doutor de plantão na porta, e invariavelmente, quando chega o “preso”, e dependendo do potencial financeiro ou patrimonial e aí não importando o grau de licitude da origem, o mesmo torna-se “cliente”, e seus direitos, todos são invocados, ou não ? Concordo, que há inúmeros programas televisivos, aonde a principal matéria é noticiar crimes ou valorizar, no tempo de exposição, a violência, e para isto há patrocinadores e audiência, principalmente daqueles que não distinguem a “violência legal da pena”, quando aplicada. Mas, principalmente a “violência ilegal”, na deturpação da concessão de tempo, para aquilo que chamamos de liberdade de informação. Já que, muitos usam estes programas, para criar personagens paladinos. Usando estes programas/personagens, em campanhas eleitorais feitas com desigualdade. Ou isto, também não é um desrespeito a minha, a nossa dignidade? Não é uma “violência ilegal? E aí surgem os neopolíticos legisladores (?) e até concessionários de canais televisivos. Como diz, o promotor Maurício Lopez, quando se refere ao personagem Tiririca, “Queria ver ele sem fantasia”.Portanto, Dr. Nabuco, quando a minha, a nossa “indignação de vítimas”, deixará de ser vista, tratada como nefasta violência ilegal ?

  3. Aldo Vianna

    Prezado Articulista;

    Compreendi o sentido do seu texto. Traduzido seria o que muitas vezes falou um antigo professor de Processo Penal:
    “. . . a defesa do monstro é também a garantia da defesa de todos nós !!”.

    Portanto, há que se manter e fomentar posições críticas e contundentes no sentido de apontar para uma nova sociedade brasileira, que vez por todas se divorcie da genética dominante dos primeiros degradas que pisaram neste solo e ainda resistem nos parlamentos e mandos diversos do país.

    Sds.;

    Aldo

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