10:12A grande família dos cartórios

Do jornal Gazeta do Povo, em reportagem de Rosana Félix:

O ‘jeitinho’ paranaense de regular cartórios
A criação de leis estaduais com vícios constitucionais permitiram a perpetuação de famílias no comando de cartórios rentáveis e diversas permutas ilegais

Os cartórios do Paraná estão no olho do furacão. Ao anunciar, na semana passada, que 5,5 mil das 14,9 mil serventias extrajudiciais do Brasil têm pro­­blemas, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) confirmou que a pior situação é a paranaense. A gravidade não está na quantidade de irregularidades, mas no modus operandi aplicado, que permitiu a perpetuação de famílias no comando de cartórios rentáveis e diversas permutas ilegais.

Mas como foi que o Paraná chegou nesse ponto? A resposta é: por meio da atuação conjunta do Tribunal de Justiça, da Assembleia Legislativa e do Executivo, que nos últimos 20 anos criaram várias leis estaduais com vícios constitucionais. A morosidade do Judiciário também ajuda a explicar a “novela” dos cartórios no Paraná: há duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adin) contra leis estaduais aguardando julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2004.

A atividade de cartório extrajudicial – que envolve certidões, reconhecimento de firmas, autenticação de documentos e registros de imóveis, entre outros – é uma delegação de serviço público, a qual deve ser provida por meio de concurso. Essa regra já era mencionada em 1982, com a Emenda Constitucional n.º 22. Mas foi a Constituição de 1988 que determinou a exigência da prova para o provimento ou remoção. A permuta (quando dois titulares trocam um com o outro uma serventia) nunca esteve prevista em lei federal.

Aqui pode

Apesar de a Carta Magna só prever a possibilidade de ingresso ou remoção por meio de concurso público, leis paranaenses permitiam a permuta desde 1980. Em 1998, dez anos após a promulgação da Constituição, a Lei nº 12.358/98 manteve essa possibilidade – ela foi alvo de uma Adin proposta pelo Conselho Federal da OAB anos depois, a qual acabou prejudicada após a revogação da norma questionada.

Em 2003, o novo Código de Organização e Divisão Judi­­­ciárias do Estado ainda permitia a permuta. O anteprojeto de lei, enviado pelo TJ e aprovado pela Assembleia, previa outra inconstitucionalidade: a possibilidade de um agente que estivesse em uma delegação diferente daquela para qual prestou concurso permanecer no posto, desde que comprovasse a baixa rentabilidade da serventia original e tivesse dois anos de exercício.

Na época, deputados estaduais como Tadeu Veneri (PT) e José Maria Ferreira (PMDB) questionaram o texto. O então governador, Roberto Requião (PMDB), vetou o polêmico artigo 299. Mas essa atitude de nada adiantou: em março de 2004, o Legislativo derrubou o veto do peemedebista. A Casa era co­­­mandada por Hermas Brandão, que tinha ligação com a atividade notarial.

A reação contra a Assembleia foi forte. Em junho de 2004, a Procuradoria-Geral da República ingressou com uma Adin (nº 3.248) no STF contra a lei. No mês seguinte, foi a vez da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) apresentar a Adin nº 3.253. As duas tinham pedido de liminar, para sustar imediatamente a lei, mas nem isso foi julgado. Atualmente, as duas ações estão nas mãos do ministro Ricardo Lewandowski.

Por isso, para embasar a decisão de declarar a vacância de cerca de 350 serventias paranaenses, o CNJ cita outras Adins envolvendo leis de outros estados que já foram julgadas e aceitas pelo Supremo (417, 363 e 4.140).

“Essa demora do Poder Judiciário é muito prejudicial. O STF recebeu uma carga extraordinária de processos nos últimos anos, mas isso deveria ser enfrentado mais rapidamente”, observa o presidente da OAB Paraná, José Lucio Glomb. Independentemente da morosidade judicial, Glomb diz que o CNJ agiu certo ao declarar a vacância dos cartórios. “As várias leis estaduais têm vícios de ilegalidades. A Constituição é a ordem maior de todas as leis, e ela exigia concurso desde 1988”, ressaltou.

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Relatório – Paraná é destaque negativo
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) verificou a situação de quase 1,1 mil cartórios paranaenses, dos quais cerca de 350 foram declarados vagos porque os responsáveis não assumiram por meio de concurso público – outros 550 estão devidamente providos e sobre os demais ainda pairam pendências. A proporção de irregularidades é inferior à média brasileira: 32% contra 37%. Mas isso não impediu o corregedor nacional de Justiça, ministro Gilson Dipp, de destacar o Paraná como exemplo negativo na questão notarial.

Para entender a preocupação do CNJ com uma parte dos cartórios paranaenses, é preciso acessar o relatório de 15 mil páginas divulgado na semana passada. Das 14,9 mil serventias brasileiras analisadas, o conselho divulgou a arrecadação de apenas dez, todas no Paraná. Elas são um exemplo do que os ministros consideraram uma verdadeira “venda do ponto” por titulares que estavam prestes a se aposentar e realizaram permuta com um familiar, o qual havia passado por um concurso, mas para assumir um cartório do interior, bem menos rentável. Com essa estratégia, os novos titulares conseguiram aumentar sua arrecadação em até 400 vezes o valor que recebiam na serventia para a qual foram originalmente designados (veja tabela acima).

Além disso, são citados outros sete casos provenientes do Paraná que mostram como as pequenas serventias serviam de “trampolim” para que seus titulares fossem removidos para uma delegação mais rentável. Vários cartórios pequenos foram extintos depois que o titular assumiu outro com arrecadação bem superior. Segundo o CNJ, essas permutas mostram indícios de violação dos princípios da moralidade e da impessoalidade.

O problema de “perpetuação das famílias” em cartórios rentáveis consta no julgamento de 127 cartórios brasileiros – quase todos do Paraná. Em outros estados, a menção é feita em apenas nove ocasiões: Minas Gerais (três), Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Ceará, Piauí, Rondônia e Tocantins (um em cada).

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Jogo de gato e rato

Os cartorários paranaenses se beneficiaram de leis propostas pelo Tribunal de Justiça e aprovadas pela Assembleia Legislativa, as quais ainda não tiveram a constitucionalidade julgada. Veja o histórico:

Janeiro de 1980– O Paraná permite permutas entre serventias de igual natureza, condicionada ao interesse da Justiça e desde que pleiteadas após dois anos de efetivo exercício do cargo.

A Constituição limitou o ingresso nos cartórios a concurso público

Hermas Brandão, ex-presidente da AL: derrubou veto do governador

Junho de 1982– A Emenda Constitucional nº 22/82 já mencionava que o provimento nas serventias extrajudiciais deveria ser por concurso, mas permite a efetivação de substitutos com cinco anos de exercício.

Janeiro de 1986– A Lei Estadual nº 8.280/86 revogou a exigência de dois anos para permuta – ela pode ocorrer a qualquer tempo, mesmo dias.

Outubro de 1988– Com a promulgação da Constituição Federal, a forma de ingresso e remoção nos cartórios só pode ser feita por meio de concurso.

Dezembro de 1990– A Lei Estadual nº 9.497/90 ainda prevê a possibilidade de permuta “no interesse da Justiça”, decidida pelo Conselho da Magistratura do TJ.

Novembro de 1994– A Lei Federal nº 8.935 regulamenta a atividade notarial e prevê que as vagas abertas são preenchidas, alternadamente da seguinte forma: 2/3 por provimento com concurso público de provas e títulos e 1/3 por remoção com concurso de provas e títulos.

Dezembro de 1998– Outra lei estadual prevê que a remoção pode ocorrer “por permuta ou concurso” (nº 12.358/98). A permuta depende de manifestação dos interessados e aprovação do Conselho da Magistratura. Anos depois, o Conselho Federal da OAB ingressa no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade da lei.

Julho de 2002– No Brasil, as remoções devem ser feitas apenas por concurso de títulos, segundo a Lei Federal nº 10.506/02.

Dezembro de 2003– A Lei Estadual nº 14.277/03 mantém as permutas. O projeto de lei que deu origem à norma – de autoria do Judiciário e defendido pelo então presidente do TJ, Oto Sponholz – gerou muita discussão na Assembleia Legislativa, porque havia indícios de inconstitucionalidade. Entre eles estava o artigo 299, que foi vetado pelo então governador Roberto Requião.

Março de 2004– A Assembleia Legislativa, comandada por Hermas Brandão, derruba o veto do governador e entra em vigor o artigo 299 (Lei nº 14.351/04), que permite que serventuário que respondam por diferente delegação daquela do ingresso pode ser efetivado, desde que comprove que tinha pouca rentabilidade, entre outras coisas.

Junho de 2004– A Procuradoria-Geral da República ingressa com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no STF contra a Lei nº 14.351/04.

Julho de 2004– A Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) ingressa com outra Adin no STF contra a mesma lei.

Junho de 2009– O CNJ edita a Resolução nº 80, exigindo informações sobre as serventias e criando regras nacionais para os concursos de provimento e de remoção.

Janeiro de 2010– Com as informações preliminares, o CNJ declara a vacância de 7,7 mil serventias por irregularidades, mas há prazo para recurso no CNJ. Atingidos alegam que têm direito adquirido e que estão embasados em leis estaduais.

Julho de 2010– CNJ aceita 1,8 mil pedidos de impugnação. Com isso, divulga lista definitiva com 5,5 mil cartórios irregulares em todo o Brasil, dos quais cerca de 350 no Paraná. Anoreg-PR critica listagem e pretende recorrer.

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