10:03Inventário

por Zeca Corrêa Leite 

Meu filho
seu pai é um homem cansado
pelo muito que amou na vida.
Seu pai é um sonâmbulo
em pleno entardecer.
Ri com essas brincadeiras inocentes
de crianças à porta das casas,
acompanha o vôo das borboletas
se enternece com as águas da chuva
e com as músicas de Chico Buarque.
Dá para entender isso?
Filho, você que desconhece tudo isto
é a testemunha única de passados tantos,
de momentos muitos, de histórias todas.
Miseravelmente você é a única vítima de tudo,
porque lhe deixo adormecido
sentindo apenas a brisa da vida e dos tempos,
e vivo aparando-lhe o real
e dimensionando a fantasia.
“Pra quê?” você me pergunta,
“se meu coração se contrai com suas rugas, meu pai?”
Bobagem minha resguardar um tesouro
que não existe mais.
Mostrar sempre o nascer do sol
e o rosto das pessoas e dizendo sempre
que cada linha guarda um brilho
vindo do coração.
Antiga bobagem, maneira de contar histórias
como faziam nossos avós.
Ou como deveriam fazer
pois fui órfão de avós
e deles não tive histórias, nem carinhos,
nem colo, nem bocas desdentadas.
Essa herança deixo a você, filho
– a orfandade dos avós,
as noites de chuva, trovões e caiporas,
lamparinas acesas, rugir de cavalos na escuridão.
Mas ainda tenho paisagens criadas
nas dobras de minha alma
e posso desdobrá-las para você
e limpar o pó dos anos todos
e… Filho perdoa-me as lágrimas,
este pranto que regou meu nascimento
e apontou-me o destino.
Eram duas horas da manhã de sábado
e havia solidão quebrando-se
em cacos de cristais na madrugada.
Assim nasci a alma cortada ao meio
e invadida de estrelas e pirilampos.
Meu destino foi tomar banho com ramos de alecrim,
costurar panos e jogar no rio sem olhar para trás,
amar as pessoas olhando-as pelos vãos das portas
e depois adormecer como se esperasse
por uma diligência de nunca mais.
Mas, filho, a força estranha dos cantores
é que me leva a cantar os versos
e lhe trazer estes pães camponeses
e adormecê-lo no peito de feno e algodão.
Filho, amado, perdoe-me,
mas você terá sempre um pai fraco,
amoroso, teimoso, poeta.
E nada vai mudar
porque todas as imagens sangram,
adormecem e despertam comigo.
Como a brisa constante do alecrim
e paineiras em flor
que balouçam suaves
na composição das manhãs de primavera.

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