6:58Pedido de emprego

De Rogério Pereira, publicado no site Vida Breve (http://vidabreve.com/):

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Ilustração de Ricardo Humberto

Prezado Nelson, tudo bem? Sei que esta pergunta soa apenas retórica. Ainda mais nestes dias de tempestades. Som e fúria pairam sobre a tua cabeça. Shakespeare é teu santo padroeiro. Grande sacanagem. Coisa de gente desocupada, pode ter certeza. Estou contigo, aviso. Não esmoreça, meu caro, tudo vai passar. Mas este contato não é para puxar-lhe o saco — para isso, você já tem gente de sobra. E como! O assunto é sério, muito sério, pelo menos para mim: preciso de um emprego. Há alguns dias, penso nisso com afinco, dedicação e certo desespero. A vida não está nada fácil. No entanto, um alento repentino encheu-me de esperança. Li nos jornais que aí, na Casa que vossa senhoria preside com galhardia e ilibado pudor democrático, há emprego até para os mortos. É verdade? Então, pensei: se um morto pode fazer o trabalho necessário para o bom funcionamento da Casa, eu também posso. Até consigo imaginar algumas funções para os mortos. Mas isso não é problema meu. Preocupo-me com os vivos. E garanto: estou vivinho da silva, mesmo que minha magreza seja cadavérica. Portanto, aqui estou a lhe pedir um emprego, um cargo, um posto de trabalho. Chame-o como quiser, mas, por favor, ouça-me com atenção.

Pensei em lhe enviar um currículo. Desisti por considerá-lo um tanto impessoal. Optei, então, por este texto (pode chamá-lo de carta, crônica, mensagem na garrafa, etc.) mais direto e educado. Veja, não sei muito bem o que posso fazer em seu gabinete. Mas estou muito disposto. E tenho boa saúde. Pelo menos melhor que a de um morto. Tenho disposição para encarar as tarefas mais indigestas. Não se acanhe: mande-me fazer, que eu executo. Sou criativo, leal e discreto. Fui criado na roça, vendi flores durante a infância. Tenho, portanto, um pé no pomar. Posso, quem sabe, ser um bom laranja. Não leve a mal meu anêmico trocadilho, mas ele dá uma pequena amostra de meus vastos talentos. Fui office-boy durante algum tempo. Sou razoável em matemática e português. Aprendi a datilografar como poucos. Hoje, se diz digitar. Mas no meu tempo, aprendia-se nas velhas máquinas Olivetti. Vou lhe contar um segredo: datilografo muito bem graças às pernas da Elis. Explico. A Elis era uma moreninha bonita pacas, que sempre sentava ao meu lado na salinha do Senac, ali na André de Barros. Ela, invariavelmente, ia de saia. Como a professora vigiava-nos para que não olhássemos para as teclas, eu fulminava as pernocas da Elis. E lá ia eu: asdfgçlkjh, asdfgçlkjh, asdfgçlkjh… Escrevi livros e mais livros no trecho entre os joelhos e o início do triângulo de fogo e perdição da Elis. Não lhe conto isso à toa. É para o senhor notar a minha capacidade de observação. Sou um grande observador. Poderia trabalhar como espião, segurança ou qualquer outra coisa parecida. Topa? Ou, então, jardineiro, levando em consideração minhas habilidades com flores. O senhor me contrata como jardineiro da Casa e eu trabalho também na sua casa, no seu jardim. Parece-me uma boa idéia. Se o senhor mora em apartamento, esqueça. Mas fica a sugestão.

Também fiz outras coisas na vida. Todas sem muita importância, como entregar medicamentos para dentistas, fabricar cadeiras de bambu, vender crisântemos diante de cemitérios e rosas aos casais apaixonados na noite curitibana. Picolé e chuchu também constavam da minha carteira de produtos explorados comercialmente. Na adolescência, vendia relógios contrabandeados do Paraguai aos meus colegas de escola, além de resenhas de livros e redações. Portanto, tenho um pé no crime organizado. Sou tímido, mas sei me virar. Posso, garanto, ser muito útil ao seu projeto político.

Meu extenso currículo tem falhas imperdoáveis. Admito agora para não passar vergonha depois. Não sei inglês. Mas isso, acho, não fará muita diferença na Casa que vossa senhoria preside. Muitos de seus colegas parlamentares não sabem nem português direito. No português falado, não sou muito bom. Mas na forma escrita, consigo me expressar direitinho. Posso escrever alguns textos em seu nome. Não que eu o faça com mais qualidade que o senhor. Mas quero poupar-lhe tempo, para que possa concentrar forças em leis e projetos. Enfim, buscar caminhos para melhorar a vida de todos nós. Então, eu escrevo e o senhor assina. Juro que não me importarei. Não sou muito vaidoso e prometo caprichar. Aprendi a escrever razoavelmente ao ler centenas de livros. Sempre acreditei que só conseguiria aprender alguma coisa lendo romances, crônicas, contos e poesias. Ao senhor isso pode parecer uma estupidez. Mas garanto: deu certo. E, aqui, chegamos ao ponto crucial deste pedido de emprego. O que sei fazer mesmo, direitinho, sem muitos erros, é ler. Leio de tudo com bastante atenção. O que não compreendo, leio novamente. Sou dedicado à leitura. Parece estranho, mas é isso mesmo. Orgulho-me de ter aprendido a ler. Portanto, tenho a sugestão para o cargo perfeito, aquele que me espera, aquele em que lhe serei muito útil, aquele que lhe livrará de embaraços, aquele que lhe tornará aos olhos dos outros um homem mais sábio: LEITOR. Não se espante. É isso mesmo. O senhor me contrata para ler tudo que for necessário. Eu leio com atenção e lhe digo exatamente o conteúdo do texto. Vocês vivem dizendo que assinaram determinado documento sem ler. Então, eu estou aqui para resolver seus problemas. Nunca mais deixará de saber quais documentos assinou. Isso evitará, por exemplo, a nomeação de mortos. Eu digo: mas este sujeito morreu?! O senhor nunca passará pelo ridículo de ser um coveiro às avessas, como alguns daqueles que lhe sucederam na presidência da Casa.

Sei que o senhor não tem tempo a perder e este pedido já se estende aos confins. Portanto, finalizo aqui. Mas antes, permita-me contar-lhe uma última história. E deixo também uma sugestão. Tenho um amigo cujo cachorro chama-se Nelson. Uma maldade, pois se trata de um vira-lata dos mais sem-vergonhas. Sinceramente, acho muito desagradável esta mania de colocar nome de gente em animal. A minha vizinha, por exemplo, tem uma cadela chamada Sofia. O mesmo nome da minha filha. Elas nutrem ódio e pavor uma pela outra. Dia desses, a Sofia da vizinha simplesmente comeu um pedaço da porta. Abriu um rombo. Não me pergunte os motivos. Desde então, a minha Sofia apavora-se com o mais simples rosnar da Sofia canina. Fica aqui a singela sugestão para o senhor criar uma lei estadual que proíba que animais recebam nomes supostamente humanos. Pode-se abrir exceções aos peixes. Note que mesmo antes de ganhar o emprego, já estou lhe dando dicas preciosas. Com esta nova lei, evitaremos, por exemplo, que meu amigo, durante o passeio com o cachorro, grite: “Não cague aí, Nelson”.

 P.S. Caso aceite este pedido de emprego, por favor, entre em contato.

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