6:13Sal de Salinger

por Yuri Vasconcelos Silva

Caixa metálica, pequena e azul, de doces importados. No lugar das balas, havia papéis dobrados, alinhados, coloridos e espremidos pelo pouco espaço. Oito anos, talvez mais, ele calcula. Começou quando guardou o primeiro bilhete trocado durante a aula de química no segundo grau. Quem escreveu, alguém importante que o deixava feliz só por estar perto, e depois chorar tantas vezes, anos mais tarde. Uma dor que parecia tão enorme que não suportaria. Todas aquelas outras cartas, com vincos tão fortes em suas dobraduras, denunciavam que ele as protegia como tesouros privativos. Alguns, é verdade, eram enterrados mais fundo na pilha. Destes ele sentia medo.

Hoje completou trinta e um. Para comemorar, foi ao cinema sozinho. Quando chegou em casa, ao ver o calendário pendurado na lateral do guarda-roupa, 28 de janeiro, sentiu aquelas pedras de gelo caírem novamente dentro do peito. Ainda não conseguiu descrever claramente tais sintomas para seu médico, e isso o frustrava profundamente. Ao invés de buscar as pílulas, resolveu visitar a caixinha de metal lá no fundo dos cobertores enrolados. Cada papel, com sua marca única como digital, indicava a história que existia ali. Mesmo sabendo de cor, gostava de abrir uma ou outra apenas para conferir se seu passado havia mudado. Hoje decidiu escolher aquela dobrada cem vezes e guardada no fim do pote. Estranhou porque não sentiu hesitação na escolha. Leu. Releu. Algo mudou.
Palavras e frases iguais, mas o efeito diferente. Não fazia o menor sentido. Não existia mais a euforia, nem a raiva e a tristeza brotando em sua mente enquanto seus olhos avançavam linha a linha. Apenas uma neutralidade suave. Tão leve que um sorriso sutil redesenhou o rosto dele. Sorriso daqueles discretos que alguém dá quando está sozinho com seus pensamentos agradáveis e tolos.

Curioso com a experiência, foi investigar outras histórias. Percorreu desde as mais sofridas até  as ridículas. Outra vez, as pulsões familiares não mais surgiam.

Uma idéia lhe ocorreu. As pílulas. Sempre desconfiou que aqueles comprimidos escudados por uma bandeira preta, iriam um dia desconfigurar as conexões sinápticas, ou qualquer outra justificativa científica o bastante para explicar a mudança de sua personalidade. Como a ciência substituiu Deus, sua alma era agora controlada por psiquiatras e laboratórios farmacêuticos. Estando certo ou não, decidiu testar de forma mais profunda esta teoria.

No criado mudo, pegou um dos livros. Considera importante ter um seleto rol deles sempre por perto, para ler em situações de emergência. Escolhe aquele que proporcionou seu segundo batizado, quando ele mesmo escolheu o nome Holden Caulfield como o mais apurado para descrever sua personalidade. Tinha dezenove anos na época que adotou este outro-eu, que ainda hoje parece fazer algum sentido. No entanto, ao ler os parágrafos cuidadosamente sublinhados há dez anos, o espelho parece não funcionar tão bem. Pousou o livro no topo da pilha, para analisar mais tarde se merecia ainda ficar junto dos outros. Prosseguiu com outro plano.

Como fazia nos tempos quando aquelas cartas foram escritas, decidiu ir até o Charlie, um pequeno bar de rock em uma obscura rua da cidade, perto da Catedral. Era um lugar onde se sentia eufórico quando se sentava ao bar, e melancólico na pista de dança. Por isso estava sempre inquieto lá dentro e, graças a esta peculiaridade, conheceu algumas das autoras das cartas dentro da latinha de guloseimas. Apesar do tempo que se passou desde a última vez naquele pub, tudo era exatamente igual. Entrou, reconheceu alguns rostos familiares atrás do balcão. Não sentiu quase nada, exceto pela irritação do cheiro de fumaça e ruído alto. Mesmo sendo a velha música que ele tanto apreciava, não era a mesma coisa.

Antes de retornar para casa, a experiência derradeira. Estrada até o município vizinho. Ele adorava dirigir vagarosamente pelo caminho sinuoso, escurecido pela noite e árvores que formavam abóbodas sobre a estrada. Às vezes acompanhado de alguém a quem deveria impressionar sem utilizar palavras, apenas para mostrar o que lhe tocava. Outras, sozinho. Os fachos curtos amarelados de seu carro varrendo aquele asfalto negro e cintilante, concedia-lhe uma extraordinária sensação de liberdade que mal cabia em seu peito. Só que, desta vez, sentiu o vazio da estrada como uma realidade tangível. Esta vacuidade estava por toda parte, fora e dentro.

Parou o carro, olhou para o alto. O céu como o asfalto. O vazio daquela esfera infinita o atingiu em cheio. Os pensamentos visitando o passado e buscando significados, nada encontrava. Tentava vislumbrar algum futuro, imediato ou longínquo, e percebia não sentir mais medo ou esperança. Então desistiu e se entregou àquela ausência completa de sentimentos. Tal como sal jogado em água fervente, tudo se dissipou. Cada memória que ele considerava tão sólida e fundamental para o que ele é hoje, se dissolveu como um sonho não lembrado. A música predileta tocada no Charlie se tornou silêncio. O caminho que era perfeito agora é apenas escuro. Holden estava morto. Se deu conta que a cada momento que passa, a história dele deixa de existir e que, de fato, ele morre em todos os segundos. Então ele também renasce a cada instante, e conclui que é um poder magnífico, esta escolha infinita e livre de ser o que quiser no único tempo que existe, o agora.

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